terça-feira, 19 de maio de 2015

Licantropia

Compilado do livro Libertação de
André Luiz (espírito) e Francisco Xavier

A frente de vasta tribuna vazia e sob as galerias laterais abarrotadas de povo, compacta multidão se amontoava, irreverente. Alguns minutos decorreram, desagradáveis e pesados, quando absorvente vozerio se fez ouvido: Os magistrados! Os magistrados! Lugar! Lugar para os sacerdotes da justiça!

Procurei a paisagem exterior, curiosamente, tanto quanto me era possível, e vi que funcionários rigorosamente trajados à moda dos lictores da Roma antiga, carregando a simbólica machadinha (fasces) ao ombro, avançavam, ladeados por servidores que sobraçavam grandes tochas a lhes clarearem o caminho.


Penetraram o átrio em passos rítmicos e, depois deles, sete andores, sustentados por dignitários diversos daquela corte brutalizada, traziam os juízes, esquisitamente ataviados. Que solenidade religiosa era aquela? As poltronas suspensas eram, em tudo, idênticas à sédia gestatória das cerimônias papalinas.


Varando, agora, o recinto, os lictores passaram o instrumento simbólico às mãos e alinharam-se, corretos, perante a tribuna espaçosa, sobre a qual resplandecia alarmante facho de luz. Os julgadores, por sua vez, desceram, pomposos, dos tronos içados e tomaram assento numa espécie de nicho a salientar-se de cima, inspirando silêncio e temor, porque a turba inconsciente, em redor, calou-se de súbito.

Tambores variados rufaram, como se estivéssemos numa parada militar em grande estilo, e uma composição musical semi-selvagem acompanhou-lhes o ritmo, torturando-nos a sensibilidade. Terminado aquele ruído, um dos julgadores se levantou e dirigiu-se à massa, aproximadamente nestes termos: “Nem lágrimas, nem lamentos. Nem sentença condenatória, nem absolvição gratuita. Esta casa não pune, nem recompensa. A morte é caminho para a justiça. Escusado qualquer recurso à compaixão, entre criminosos. Não somos distribuidores de sofrimento, e, sim, mordomos do Governo do Mundo”.

Nossa função é a de selecionar delinqüentes, a fim de que as penas lavradas pela vontade de cada um sejam devidamente aplicadas em lugar e tempo justos. Quem abriu a boca para vilipendiar e ferir, prepare-se a receber, de retorno, as forças tremendas que desencadeou através da palavra envenenada.

Quem abrigou a calúnia, suportará os gênios infelizes aos quais confiou os ouvidos. Quem desviou a visão para o ódio e para a desordem, descubra novas energias para contemplar os resultados do desequilíbrio a que se consagrou. Quem utilizou as mãos em sementeiras de malícia, discórdia, inveja, ciúme e perturbação deliberada, organize resistência para a colheita de espinhos.

Quem centralizou os sentidos no abuso de faculdades sagradas espere, doravante, necessidades enlouquecedoras, porque as paixões envilecentes, mantidas pela alma no corpo físico, explodem aqui, dolorosas e arrasadoras. A represa por longo tempo guarda micróbios e monstros, segregados a distância do curso tranquilo das águas; todavia, chega um momento em que a tempestade ou a decadência surpreendem a obra vigorosa de alvenaria e as formas repelentes, libertadas, se espalhem e crescem em toda a extensão da corrente.

Seguidores do vício e do crime, tremei! Condenados por vós mesmos, conservais a mente prisioneira das mais baixas forças da vida, à maneira do batráquio encarcerado no visco do pântano, ao qual se habituou no transcurso dos séculos! Nesse ponto, o orador fez pausa e reparei os circunstantes. Olhos esgazeados pelo pavor jaziam abertos em todas as máscaras fisionômicas.

O juiz, por sua vez, não parecia respeitar o menor resquício de misericórdia. Mostrava-se interessado em criar ambiente negativo a qualquer espécie de soerguimento moral, estabelecendo nos ouvintes angustioso temor. Prolongando-se o intervalo, enderecei com o olhar silenciosa interrogação ao nosso orientador, que me falou quase em segredo:

— O julgador conhece à saciedade as leis magnéticas, nas esferas inferiores, e procura hipnotizar as vítimas em sentido destrutivo, não obstante usar, como vemos, a verdade contundente. Não vale acusar a edilidade desta colônia — prosseguiu a voz trovejante —, porque ninguém escapará aos resultados das próprias obras, quanto o fruto não foge às propriedades da árvore que o produziu.

Amaldiçoados sejam pelo Governo do Mundo quem nos desrespeite as deliberações, baseadas, aliás, nos arquivos mentais de cada um. Assinalando, intuitivamente, a queixa mental dos ouvintes, bradou, terrificante: Quem nos acusa de crueldade? Não será benfeitor do espírito coletivo o homem que se consagra à vigilância de uma penitenciária? e quem sois vós, senão rebotalho humano? Não viestes, até aqui, conduzidos pelos próprios ídolos que adorastes?

Nesse momento, convulsivo choro invadiu a muitos. Gritos atormentados, rogativas de compaixão se fizeram ouvir. Muitos se prosternaram de joelhos. Imensa dor generalizara-se. Gúbio trazia a destra sobre o peito, como se contivesse o coração, mas, vendo por minha vez aquele grande grupo de espíritos rebelados e humilhados, orgulhosos e vencidos, lastimando amargamente as oportunidades perdidas, recordei meus velhos caminhos de ilusão e, porque não dizer? Ajoelhei-me também, compungido, implorando piedade em silêncio.

Exasperado, o julgador bradou, colérico: Perdão? Quando desculpastes sinceramente os companheiros da estrada? Onde está o juiz reto que possa exercer, impune, a misericórdia? E incidindo toda a força magnética que lhe era peculiar, através das mãos, sobre uma pobre mulher que o fixava, estarrecida, ordenou-lhe com voz soturna: Venha! Venha!

Com expressão de sonâmbula, a infeliz obedeceu à ordem, destacando-se da multidão e colocando-se, em baixo, sob os raios positivos da atenção dele. — Confesse! Confesse! Determinou o desapiedado julgador, conhecendo a organização frágil e passiva a que se dirigia. A desventurada senhora bateu no peito, dando-nos a impressão de que rezava o “confiteor” e gritou, lacrimosa: Perdoai-me! Perdoai-me, ó Deus meu!

E como se estivesse sob a ação de droga misteriosa que a obrigasse a desnudar o íntimo, diante de nós, falou, em voz alta e pausada: “Matei quatro filhinhos inocentes e tenros e combinei o assassínio de meu intolerável esposo. O crime, porém, é um monstro vivo. Perseguiu-me, enquanto me demorei no corpo. Tentei fugir-lhe através de todos os recursos, em vão e por mais buscasse afogar o infortúnio em “bebidas de prazer”, mais me chafurdei no charco de mim mesma.

De repente, parecendo sofrer a interferência de lembranças menos dignas, clamou:  “Quero vinho! Vinho! Prazer! Em vigorosa demonstração de poder, afirmou, triunfante, o magistrado: “Como libertar semelhante fera humana ao preço de rogativas e lágrimas? Em seguida, fixando sobre ela as irradiações que lhe emanavam do temível olhar, asseverou, peremptório: “A sentença foi lavrada por si mesma! Não passa de uma loba, de uma loba...

A medida que repetia a afirmação, qual se procurasse persuadi-la a sentir-se na condição do irracional mencionado, notei que a mulher, profundamente influenciável, modificava a expressão fisionômica. Entortou-se lhe a boca, a cerviz curvou-se, espontânea, para a frente, os olhos alteraram-se, dentro das órbitas. Simiesca expressão revestiu-lhe o rosto. Via-se, patente, naquela exibição de poder, o efeito do hipnotismo sobre o corpo perispirítico.

Em voz baixa, procurei recolher o ensinamento de Gúbio, que me esclareceu num cicio: “O remorso é uma bênção, sem dúvida, por levar-nos à corrigenda, mas também é uma brecha, através da qual o credor se insinua, cobrando pagamento. A dureza coagula-nos a sensibilidade durante certo tempo; todavia, sempre chega um minuto em que o remorso nos descerra a vida mental aos choques de retorno das nossas próprias emissões.

E acentuando, de modo singular, a voz quase imperceptível, acrescentou: “Temos aqui a gênese dos fenômenos de “licantropia”, inexplicáveis, ainda, para a investigação dos médicos encarnados. Lembras-te de Nabucodonosor, o rei poderoso, a que se refere a Bíblia? Conta-nos o Livro Sagrado que ele viveu, sentindo-se animal, durante sete anos. O hipnotismo é tão velho quanto o mundo e é recurso empregado pelos bons e pelos maus, tomando-se por base, acima de tudo, os “elementos plásticos do perispírito”.

Notando, porém, que a mulher infeliz prosseguia guardando estranhos caracteres no semblante perguntei: “Esta irmã infortunada permanecerá doravante em tal aviltamento da forma? Finda longa pausa, o Instrutor informou, com tristeza: “Ela não passaria por esta humilhação se não a merecesse”.

Além disso, se se adaptou às energias positivas do juiz cruel, em cujas mãos veio a cair, pode também esforçar-se intimamente, renovar a vida mental para o bem supremo e afeiçoar-se à influenciação de benfeitores que nunca escasseiam na senda redentora. Tudo, André, em casos como este, se resume à problema de sintonia. Onde colocamos o pensamento, aí se nos desenvolverá a própria vida.

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