domingo, 19 de março de 2017

O silêncio, realmente, é uma prece?



É muito comum encontrarmos, ainda hoje, em muitos centros espíritas, tabuletas com a pouco refletida, e nem por isso pouco polêmica, frase: “O SILÊNCIO É UMA PRECE” ou alguma variação de construção linguística, que, na maioria das vezes, denota a mesma ideia básica. Tais dizeres são encontrados em salões de palestras, em salas de grupos de estudos ou até mesmo em livrarias e bibliotecas.

Na maioria das vezes, a ideia básica da sentença é passar a mensagem subliminar de que todos devem ficar quietos, ou seja, calados, sem conversar, para não atrapalhar o ambiente e, sobretudo, o palestrante e/ou o coordenador dos estudos.

A questão é saber se o silêncio consiste realmente em uma prece, uma vez que o fato de termos necessidade do silêncio para o bom andamento dos trabalhos não tornaria necessariamente o ato de estarmos calados uma oração. Ou tornaria? Reflitamos sobre isso...

Sabemos que “os fins NÃO são justificados pelos meios”, ainda mais em uma Doutrina de libertação das consciências, como é o caso do Espiritismo. Assim sendo, no centro espírita, a universidade da Alma, não podemos considerar razoável a prática corriqueira, em nossa sociedade, da utilização frequente das denominadas “mentiras brancas”, também chamadas “mentiras leves”, para atingirmos fins espirituais. Tais hábitos têm suas origens nas religiões tradicionais do passado, as quais faziam mitos virarem verdades doutrinárias para que o medo e a ignorância gerassem os resultados morais esperados pelos orientadores religiosos. Foi assim que foi feito com o Diabo e também com o Inferno Eterno, os quais continuam amedrontando muitas pessoas, inclusive, líderes religiosos, a fim de que o medo, supostamente, leve tais indivíduos “tementes a Deus” a “pecarem” menos.

A Doutrina Espírita, fundamentada na fé raciocinada e científica, é uma proposta eminentemente educacional. Por isso, todos os conceitos direta ou indiretamente relacionados ao Espiritismo podem, e devem, ser questionados, estudados e refletidos racionalmente para que “encontremos a Verdade para que a Verdade nos liberte”.

A oração é um ato voluntário de direcionamento dos pensamentos e sentimentos para objetivos mais nobres, constituindo de uma reflexão racional sobre os aspectos espirituais da Vida em um colóquio sublime com o Criador e/ou os Mentores espirituais. Pode ter objetivos pessoais e/ou coletivos, dependendo das intenções daquele que ora. Poderíamos até afirmar que a oração verdadeiramente elevada já é um início, ou uma parte, de um processo mais amplo de reforma íntima.

Por outro lado, estar em silêncio, pelo menos do ponto de vista material, é estar calado, ou seja, sem falar nada, e, ademais, sem fazer excessivos barulhos através de nossa movimentação corporal.

Alguns leitores podem estar questionando se o famigerado “silêncio” das tabuletas não seria uma espécie de “silêncio” em um sentido mais profundo (e até metafórico), ou seja, um tipo de silêncio espiritual, que contemplasse tanto o silêncio da boca como o silêncio do coração.

Nessa hipótese, um tanto quanto forçada, teríamos que questionar: o que seria esse “silêncio”? De fato, algo tão profundo assim teria que ser enfocado, com frequência, nas casas espíritas para que os adeptos, principalmente os novatos, compreendessem a ideia geral desse, suposto, “silêncio interior”, para, subsequentemente, entender a ideia profunda intrínseca à mensagem “O SILÊNCIO É UMA PRECE”. Tal estudo não costuma ser desenvolvido nas casas espíritas. E por que razão? Justamente porque tal profundidade não existe. O “silêncio” das referidas mensagens é apenas uma recomendação para que haja um esforço no sentido de que os frequentadores façam a menor quantidade de barulho possível.

E como ninguém questiona as tabuletas, elas vão passando de geração para geração.

É curioso notar algumas cenas que ocorrem com certa frequência em casas espíritas relacionadas a tais dizeres. Muitas vezes um novo frequentador ou uma criança ou jovem está conversando exageradamente antes ou durante determinada palestra, por exemplo, e algum companheiro aponta a tabuleta recomendando o silêncio. Veja bem, recomenda-se com tal atitude o silêncio, e não a prece.

Admitindo que em algumas raras e especiais exceções, haja realmente esse ideia mais profunda, tal sentido deve, de tempos em tempos, ser explicitada nas reuniões públicas, a fim de que os neófitos entendam a proposta. Ainda assim, a frase não se torna correta em função dessa boa intenção e das respectivas explicações.

Temos nessa simples frase mais um triste exemplo de “prática tradicional”, para não dizer quase que ritualista, sem fundamentação minimamente racional.

Precisamos lembrar que uma pessoa em silêncio pode estar pensando em cometer suicídio, praticar um roubo, ou até mesmo cometer um assassinato. Pode estar profundamente obsedada e mergulhada em sentimentos de ódio e ressentimento. Temos exemplos disso todos os dias, nos mais variados ambientes, desde hospitais psiquiátricos até mesmo nos convívios familiares, passando, obviamente, pelos núcleos religiosos, entre outros ambientes.

Em algumas tabuletas mais objetivas, nas quais esteja escrito laconicamente “SILÊNCIO É PRECE”, poderíamos fazer uma sugestão para aqueles que não querem se desfazer do quadro. Que tal apagar o acento agudo e trocar “SILÊNCIO É PRECE” por “SILÊNCIO E PRECE”, que teria muito mais consistência do ponto de vista doutrinário?!

O silêncio é, sem dúvida, uma condição fundamental para diversos trabalhos na casa espírita, mas não se torna sinônimo de prece somente por isso, em que pese que pode, em muitos casos, ser um fator predisponente (mas não imprescindível) para uma subsequente ou concomitante prece.

Reflitamos sobre cada atitude, prática ou convenção que adquirimos e muitas vezes criamos em nossos arraiais, para que, natural e paulatinamente, as atitudes de simplicidade e de verdadeira religiosidade, em um sentido efetivamente racional, sejam cada vez mais cultivadas. Esse processo tende a favorecer a ocorrência, o quanto antes, da época em que “Deus será adorado em Espírito e Verdade”, como nos ensinou nosso Mestre Maior, Jesus de Nazaré.


            Leonardo Marmo Moreira

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