quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Orai e vigiai



Como chamariam na igreja evangélica as pessoas que fazem "revelações" através de um trecho da Biblia aberta ao acaso?
Estrou atravessando um conflito com pessoas da minha familia que não admitem a minha crença na espiritualidade.
Abraços!
MM

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Olá MM,

Aquilo a que se refere enquadra-se na tradição antiga do «profetizar», que era prática dos Primeiros Cristãos (há diversas descrições nos Actos dos Apóstolos). No Espiritismo chamamos a esse fenómeno a mediunidade de psicofonia, que é o acto de se falar por inspiração dos Espíritos. Os Espíritos evoluídos compareciam nas reuniões dos Primeiros Cristãos e inspiravam-nos a proferir discursos edificantes.

Qualquer orador inspirado está a até certo ponto sob a influência de Espíritos que com ele se afinizam. Em certas reuniões de Igrejas Evangélicas ou dos católicos da Renovação Carismática, ocorre o mesmo fenómeno, mas eles atribuem-no ao Espírito-Santo. A Bíblia, a rigor, não fala de uma entidade chamada o Espírito-Santo. Nos textos originais fala-se de UM Espírito santo, isto é, de um Espírito bom, evoluído. Mas ao longo dos séculos a Teologia cristã adaptou as antigas ideias egípcias e hinduístas de um Deus Trinitário, e estabeleceu o 'tal três-em-um' do Pai, Filho e Espírito-Santo. No Espiritismo somos monoteístas, não divinizamos Jesus nem cremos nessa terceira pessoa da suposta Trindade, o rarefeito e misterioso Espírito-Santo. Com todo o respeito por quem pensa de modo diferente, é óbvio.

E por falar em respeito, digo-lhe que vejo muito poucas probabilidades de os seus familiares alguma vez virem a aceitar a sua liberdade de consciência. Por muitas explicações que se lhes dê, as pessoas que têm uma concepção exclusivista da fé, não só não aceitam como mais se encarniçam a combater o que à partida decidiram rejeitar. Nada contra as pessoas, que decerto são excelentes pessoas, mas quem se atreve a questionar a fé alheia, não é muito dado à tolerância religiosa.

Há uns anos tivemos aqui uma visita permanente e obstinada no Blog de Espiritismo, uma senhora que não conseguia entender que as traduções bíblicas nem sempre reflectem o espírito e a letra dos textos originais. Teimava a senhora que o Espiritismo é «proibido» pela Bíblia. Por mais que se lhe explicasse que o Espiritismo surgiu em 1857 e o Deuterónimo 18 data de há cerca de 3500 anos, a senhora teimava que somos «mentirosos», porque na Bíblia dela está escrito «espiritismo». Idem para o Diabo, ou o Satanás, que a referida senhora não entende que é uma adjectivo e não um substantivo, ou seja, que designa alguém mau, ou que se opõe ao Bem, e não um ser em especial.

Dedicado à senhora em questão, com carinho e paciência escrevi 10-posts-10!, a que dei o título de «Somos Espíritos». Não esperava que ela concordasse com as minhas concepções, mas que pelo menos as compreendesse. O comentário da senhora foi que eu sou um «mentiroso» e que se tratava apenas de «bla-bla-bla» :-)

O argumento recorrente é o de que nem vale a pena estudar o Espiritismo, pois a Verdade já está toda na Bíblia. De nada adianta explicar que o Espiritismo não contradiz a Bíblia, antes reforça os seus ensinamentos morais. Responder-nos-ão que após a Bíblia tudo o que vier é «mentira» (estas pessoas funcionam muito em termos maniqueístas de «A Verdade» e «A Mentira»).

Também Jesus de Nazaré foi rejeitado pelos que há dois mil anos achavam que a Verdade já estava toda no Antigo Testamento. Achavam que aquele rapaz humilde não podia ser o Messias anunciado no Antigo Testamento. Hoje, os Donos da Verdade acham que o humilde  Espiritismo não pode ser o Consolador prometido por Jesus. E só não crucificam o Consolador prometido porque este não é um homem, mas o conjunto de Bons Espíritos (O «Espírito-Santo», na concepção das religiões) enviado por Deus para explicar o que Jesus na época afirmou ser ainda cedo para explicar.

Em face disto, pessoalmente já me deixei de tentar explicar o Espiritismo a quem tem deste uma ideia tão negativa e preconceituosa que jamais se disporá a entendê-lo. Em vez disso, faço questão de traçar uma linha muito bem definida:

Clube de futebol,  partido político e religião, cada qual tem os seus, e ninguém tem o direito de impor as suas preferências aos outros. Isso é violentar a consciência alheia.

Infelizmente, nem essa afirmação consensual é consensual para quem quer à viva força levar os outros à «salvação». Na melhor das intenções entendem que estão a salvar das chamas do Inferno os profitentes de todos os outros credos que não o deles. Insistem que Jesus está para chegar a qualquer momento e não confiam que ele, melhor que ninguém, saberá entender que cada pessoa deve obedecer à sua própria consciência, e não à interpretação bíblica de uma entre as mais de 40 000 religiões cristãs que existem. para não falar das não cristãs.

Por isso o melhor é capaz de ser mesmo lembrar que cada um deve vigiar a sua própria vida e não a dos outros. E não permitir que essa linha seja ultrapassada. Com amor, mas com firmeza. Há que ter paciência e orar por quem verbera a nossa crença mas se recusa a acompanhar-nos ao centro espírita e ver com os próprios olhos, ouvir com os seus próprios ouvidos e julgar com o seu próprio entendimento. Tenho uma pessoa de família assim, que questiona as crenças de todos os que não comunguem da dela. Comigo nunca passou das intenções. Se me perguntarem sobre a minha crença, esclareço com gosto. Se a questionarem inquisitorialmente, não chegam a transpor a linha do respeito pela consciência de cada um. De qualquer forma, era uma canseira e no final tudo se resumiria a três palavras: «Bla-bla-bla». :-)

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