quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Ouvir



Voltamos a falar de Mateus, o publicano que, durante algum tempo, exerceu suas atividades em Cafarnaum, cidade que margeava o Mar da Galiléia. Ele era também chamado, como já dissemos alhures, de Levi. Tinha muitas pretensões no mundo dos negócios. Como cobrador de impostos do Império Romano, tornara-se independente.


No entanto, essa independência o tornara ainda mais devedor do seu próprio povo, porquanto os romanos não tiravam do tributo arrecadado alguma quantia ou fração que correspondesse ao trabalho de seu funcionário. Quando se tratava de país estrangeiro, era aumentado o peso da arrecadação e o aumento seria do publicano.




Eis aí o porquê do ódio que seus patrícios manifestavam aos publicanos, que se faziam amigos dos romanos, tirando o pão da boca de famintos para seus desperdícios em festas impróprias à dignidade de um país. Também Zaqueu era um desses publicanos.




Dar um banquete a alguém, naquela época, era manifestação de honra à personagem escolhida, geralmente pessoa de alta hierarquia social e política. No caso de Mateus e Zaqueu, ambos ofereceram banquetes a Jesus, tendo o Mestre comparecido.



O motivo era a admiração que tinham pelo Mestre, a honra de recebê-Lo em casa e, principalmente, a acusação da consciência por viverem às custas dos sofrimentos alheios. Era, em grande parte, a força do arrependimento. É bom notar que, no Evangelho, figure Zaqueu disposto a repor tudo aquilo que ele tinha tirado do seu próprio povo. E o próprio Cristo disse sobre o transformado lar de Zaqueu: Nesta casa hoje entrou a salvação!


O certo é que os dois publicanos, Zaqueu e Levi, depois que conheceram Jesus, distribuíam com amor os recursos que possuíam, dando a todos tudo o que podiam. Mateus havia encontrado um império maior que o dos romanos, o Império do Reino de Deus, um símbolo mais significativo que a águia, o do coração, que manifestava sem limites a vontade de ajudar, pelo prazer de ser útil.


Mateus já se cansara de ouvir abafadas revoltas contra os opressores romanos, de cujo sistema fazia parte. A multiplicação dos lamentos do povo já estava torturando seus mais profundos sentimentos. Não era isso que ele queria, na verdade. Tanto que foi entendido pelo Divino Mestre, que o chamou, tirando-o da imposição de Roma para a liberdade, para o prazer de sentir a felicidade dos outros, dando tudo o que podia para os necessitados.


A cultura de Mateus ajudou-o muito na disseminação do Evangelho. Era conhecedor dos costumes e o exercício de lidar com pessoas de todas as classes fez desenvolver nele o dom de falar e a disciplina de ouvir.


O publicano era escolhido, por sabedoria dos romanos, no seio do próprio povo dominado, entre os mais abastados e de família mais ilustre. Bem, esqueçamos Mateus como publicano e vamos falar de Mateus renovado, que pergunta e ouve sobre a renovação doutrinária de Jesus.


Intrigava ao discípulo a maneira mais apropriada de ouvir os outros. Cada pessoa era um mundo diferente, com suas idéias próprias. Será que tínhamos a obrigação de ouvir os outros? Não seria isso uma violência contra nós mesmos, não seria violentar o organismo, comendo um alimento cujo sabor não nos agradava? Sempre remoía tais idéias.


Aproxima-se a noite e Mateus procura a casa doutrinária onde todos já se encontravam reunidos. Bartolomeu, de pé, começa uma oração. Mateus senta-se com a sutilidade que a educação exige, com a mente agitada de vontade de perguntar a Jesus acerca de suas dúvidas. Ao seu lado uma fala amiga, de André, propõe: Mateus, tu foste o último a chegar, sê o primeiro a inquirir.


Como todos permaneciam em silêncio, o ex-publicano levanta-se de mansinho, olha para o Mestre que já o fitava com cordialidade, e acentua, com discrição: Jesus, por gentileza, responde-nos, se a hora for oportuna, qual é a melhor maneira e o modo mais adequado de ouvir as pessoas.


Como proceder, meu Senhor, diante de irmãos cuja fala não agrada, que vivem pensando que somente eles estão certos e que devemos aceitar o que eles aceitam como verdade. Talvez eu não esteja preparado para propor esta noite o que realmente quero ouvir. Mas é bem provável que já te inteiraste das minhas intenções.


O Nazareno, afetuoso e simples, assinala com sabedoria: A fala, Mateus, é, por assim dizer, um dom extraordinário que a vida nos outorgou como um bem de Deus. O ser humano se distingue dentre os demais viventes pela harmonia da fala e o modo mais claro de comunicação. Destarte, ele tem imenso campo para se disciplinar.


A força da conversa pode pairar em altitudes inconcebíveis para os que andam na Terra, constituindo um instrumento da alma para grandes realizações. Podes envolver teu verbo com a força de Deus e curar enfermos, consolar os tristes e dar rumo aos perdidos, podes desfazer motins, paralisar guerras e criar ou despertar, nas pessoas, os mais louváveis ideais.


Porém, sem a educação que corresponde à lei do Pai Celestial, a fala pode dar início, igualmente, a terríveis preocupações. Se te aprouver entrar no auto adestramento da tua fala, se quiseres dela fazer melodias de encanto e de esperança, não deixes que falte em ti o entusiasmo pelo aperfeiçoamento em tudo.


E, antes de falares alguma coisa, começa a atingir, com bastante critério, o reino da lua mente, para que dela saiam os pensamentos já com certa civilização. A nossa boca constitui uma glória da natureza. Fazei com que ela possa dar música aos teus pensamentos, para que estes sejam de paz e de felicidade.


Começa a fazer o bem com a palavra, para que o bem aporte a ti, obedecendo à lei do intercâmbio. Os ouvidos vieram por consequência da fala. Se não fossem eles, ela não existiria. Se saber falar é uma ciência difícil, ouvir exige maiores esforços. A meditação parecia a preocupação de todos os discípulos.


Mateus, que começou o assunto, dava mostras de muita alegria. Todavia, permanecia calado. O Mestre deu continuação, com cordialidade: Mateus! A conversa girou mais sobre a fala, parecendo que estamos fugindo à tua pergunta. No entanto, essa não é a intenção, é somente por estarem ligados os dois dons, de falar e de ouvir.


Um não pode existir sem o outro. Tu achas imprudência para contigo mesmo ouvir e dar atenção a assuntos que não dizem respeito a teus ideais. Na verdade, tua vontade é livre para ouvir ou falar. No entanto, se não podes ceder alguma coisa para teus interlocutores, e quando for a tua hora de dizer? Quem poderá te ouvir?


Existe em nós uma força de seleção daquilo que falamos e do que ouvimos dos outros. E essa escolha haverá de funcionar permanentemente, porque sempre estamos ouvindo ou querendo falar coisas com que as boas maneiras não concordam. Não existem somente coisas imprestáveis na fala alheia. Observa melhor que notarás muita, mas muita coisa boa.


Com toda a educação que podes atingir, perante tua consciência e perante Deus sempre há algo a corrigir. Certamente muitas pessoas vão ser testemunhas da tua conduta e da tua conversa, e quem sabe se não estão fazendo grande esforço para te suportarem? Faze o mesmo, porque ninguém sobe, meu filho, sem sacrifício. Todo tipo de embelezamento do coração e mesmo do corpo carece de labor.


Não vamos nos sentar o dia todo com um irmão desajustado para falar e ouvi-lo, crendo que essa é a vontade de Deus, que essa paciência é filha da caridade. Notadamente que não! Poderemos ouvi-lo, até onde o tempo não se torne um desperdício. Todos nós sabemos e conhecemos os momentos de ouvir e de desconversar com habilidade ajudando ainda a quem fala, para que sejam refreados alguns desequilíbrios.


Poucos notaram que o Cristo havia parado de falar, dada a concentração nas palavras ouvidas, que eram levadas à razão e em seguida entregues às sensibilidades, para que pudessem alimentar com abundância a fome que as pedia.


Mateus pensava, pensava no que tinha ouvido do Mestre antes, uma grande verdade: Não façais aos outros o que não quereis que os outros vos façam. Se não podemos viver sós, temos de respeitar os direitos dos semelhantes, e o respeito podia começar por saber ouvir, até bem entendido, os limites que a verdadeira caridade delimitar.


E neste pensar coletivo dos discípulos, desenvolvendo a extensão sem limites do raciocínio, o auditório volta a ouvir o Mestre: Mateus! Nós poderemos ajudar os nossos irmãos em situações difíceis, ouvindo-os. Nós poderemos tranquilizar os desesperados, pelo ouvido. Nós poderemos amenizar as cores dos doentes, ouvindo suas histórias.


Porém, é necessário, acima de tudo, saber ouvir, pois esta é uma das grandes ciências só dominada pelos anjos. Os homens estão a caminho, quando não esmorecem na educação e na disciplina, permanentemente. Saber falar, Mateus, é muito bom, mas saber ouvir é bom demais.


Desfaz-se a assembléia, toda enriquecida de conhecimentos espirituais. Rangem os gonzos, a porta se abre e os primeiros raios de sol anunciam para os homens, nesse falar sem dizer, a hora de trabalhar.
Compilado do livro Ave Luz
Autor: Shaolin (espírito) João Nunes Maia

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