sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

São Boaventura

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Queridos irmãos e irmãs,
hoje [03.03.2010] gostaria de falar de São Boaventura de Bagnoregio. Confesso-vos que, ao propor-vos este argumento, sinto uma certa saudade, porque volto a pensar nas pesquisas que, como jovem estudioso, fiz precisamente sobre este autor, que me é particularmente caro. O seu conhecimento influiu em grande medida na minha formação. Com muita alegria, há alguns meses, fui em peregrinação à sua terra natal, Bagnoregio, uma pequena cidade italiana no Lácio, que conserva com veneração a sua memória.
Tendo nascido provavelmente em 1217 e falecido em 1274, ele viveu no século XIII, uma época em que a fé cristã, radicada profundamente na cultura e na sociedade da Europa, inspirou obras imperecíveis no campo da literatura, das artes visuais, da filosofia e da teologia. Entre as grandes figuras cristãs que contribuíram para a composição desta harmonia entre fé e cultura sobressai precisamente Boaventura, homem de acção e de contemplação, de profunda piedade e de prudência no governo.
Chamava-se João de Fidanza. Um episódio que teve lugar quando ainda era jovem marcou profundamente a sua vida, como ele mesmo narra. Tinha sido atingido por uma grave doença e nem sequer o seu pai, que era médico, esperava salvá-lo da morte. Então, sua mãe recorreu à intercessão de São Francisco de Assis, que tinha sido canonizado há pouco tempo. E João ficou curado.
A figura do Pobrezinho de Assis tornou-se-lhe ainda mais familiar alguns anos mais tarde, quando se encontrava em Paris, aonde tinha ido para estudar. Obtivera o diploma de Mestre de Artes, que poderíamos comparar com o de um Liceu prestigioso dos nossos tempos. Nesta altura, como muitos jovens de ontem e também de hoje, João formulou uma pergunta crucial: "O que devo fazer da minha vida?". Fascinado pelo testemunho de fervor e de radicalidade evangélica dos Frades Menores, que tinham chegado a Paris em 1219, João bateu à porta do Convento franciscano daquela cidade, e pediu para ser acolhido na grande família dos discípulos de São Francisco. Muitos anos depois, ele explicou as razões da sua escolha: em São Francisco e no movimento por ele iniciado, entrevia a acção de Cristo. Assim escrevia numa carta endereçada a outro frade: "Confesso diante de Deus que a razão que me fez amar mais a vida do Beato Francisco é que ela se assemelha aos inícios e ao crescimento da Igreja. A Igreja começou com simples pescadores e em seguida enriqueceu-se de doutores muito ilustres e sábios; a religião do Beato Francisco não foi estabelecida pela prudência dos homens, mas de Cristo" (Epistula de tribus quaestionibus ad magistrum innominatum, in Opere di San Bonaventura. Introduzione generale, Roma 1990, pág. 29).
Portanto, por volta do ano de 1243 João vestiu o hábito franciscano e adquiriu o nome de Boaventura. Foi imediatamente destinado aos estudos e frequentou a Faculdade de Teologia da Universidade de Paris, seguindo uma série de cursos muitos exigentes. Obteve os vários títulos requeridos pela carreira académica, os de "bacharel bíblico" e de "bacharel sentenciário". Assim Boaventura estudou a fundo a Sagrada Escritura, as Sentenças de Pedro Lombardo, o manual de teologia daquela época e os mais importantes autores de teologia e, em contacto com os mestres e os estudantes que afluíam a Paris de toda a Europa, amadureceu a sua reflexão pessoal e uma sensibilidade espiritual de grande valor que, durante os anos seguintes, soube transferir para as suas obras e os seus sermões, tornando-se assim um dos teólogos mais importantes da história da Igreja. É significativo recordar o título da tese que ele defendeu para ser habilitado ao ensino da teologia, a licentia ubique docendi, como então se dizia. A sua dissertação tinha como título Questões sobre o conhecimento de Cristo. Este argumento mostra o papel central que Cristo teve sempre na vida e no ensinamento de Boaventura. Sem dúvida, podemos dizer que todo o seu pensamento foi profundamente cristocêntrico.
Naqueles anos em Paris, a cidade de adopção de Boaventura, desencadeava-se uma polémica violenta contra os Frades Menores de São Francisco de Assis e contra os Padres Pregadores de São Domingos de Guzman. Contestava-se o seu direito de ensinar na Universidade e chegava-se até a pôr em dúvida a autenticidade da sua vida consagrada. Certamente, as mudanças introduzidas pelas Ordens Mendicantes no modo de entender a vida religiosa, de que falei nas catequeses precedentes, eram tão inovativas que nem todos conseguiam compreendê-las. Além disso acrescentavam-se, como às vezes acontece também entre pessoas sinceramente religiosas, motivos de debilidade humana, como a inveja e o ciúme. Embora estivesse circundado pela oposição dos outros mestres universitários, Boaventura já tinha começado a ensinar na cátedra de teologia dos Franciscanos e, para responder àqueles que contestavam as Ordens Mendicantes, compôs um escrito intitulado A perfeição evangélica. Neste escrito, ele demonstra que as Ordens Mendicantes, de modo especial os Frades Menores, praticando os votos de pobreza, de castidade e de obediência, seguiam os conselhos do próprio Evangelho. Para além destas circunstâncias históricas, o ensinamento oferecido por Boaventura nesta sua obra e na sua vida permanece sempre actual: a Igreja tornou-se mais luminosa e bonita pela fidelidade à vocação da parte daqueles seus filhos e filhas que não só põem em prática os preceitos evangélicos mas, pela graça de Deus, são chamados a observar os seus conselhos e assim, através do seu estilo de vida pobre, casto e obediente, são testemunho de que o Evangelho é nascente de alegria e de perfeição.
O conflito foi pacificado, pelo menos por um certo período e, mediante a intervenção pessoal do Papa Alexandre IV em 1257, Boaventura foi reconhecido oficialmente doutor e mestre da Universidade parisiense. Todavia, ele teve que renunciar a este cargo prestigioso, porque naquele mesmo ano o Capítulo geral da Ordem o elegeu Ministro-Geral.
Desempenhou tal encargo durante 17 anos com sabedoria e dedicação, visitando as províncias, escrevendo aos irmãos e intervindo por vezes com uma certa severidade para eliminar abusos. Quando Boaventura deu início a este serviço, a Ordem dos Frades Menores desenvolveu-se de modo prodigioso: contavam-se mais de 30.000 frades espalhados por todo o Ocidente, com presenças missionárias no norte da África, no Médio Oriente e até em Pequim. Era necessário consolidar esta expansão e sobretudo conferir-lhe, em plena fidelidade ao carisma de Francisco, unidade de acção e de espírito. Com efeito, entre os seguidores do Santo de Assis havia vários modos de interpretar a sua mensagem e existia realmente o risco de uma ruptura interna. Para evitar este perigo, o Capítulo geral da Ordem em Narbona, em 1260, aceitou e rectificou um texto proposto por Boaventura, em que se reuniam e unificavam as normas que regulavam a vida diária dos Frades Menores. No entanto, Boaventura intuía que as disposições legislativas, por mais que se inspirassem na sabedoria e na moderação, não eram suficientes para garantir a comunhão do espírito e dos corações. Era necessário compartilhar os mesmos ideais e motivações. Por isso, Boaventura quis apresentar o carisma genuíno de Francisco, a sua vida e o seu ensinamento. Reuniu, então, com grande zelo documentos relativos ao Pobrezinho e ouviu com atenção as recordações daqueles que tinham conhecido Francisco directamente. Daqui nasceu uma biografia do Santo de Assis, bem fundamentada sob o ponto de vista histórico, intitulada Legenda maior, redigida também de forma mais abreviada e por isso chamada Legenda minor. Diversamente do termo italiano, esta palavra latina não indica um fruto da fantasia, mas ao contrário "Legenda" significa um texto autorizado, "que se deve ler" oficialmente. Com efeito, o Capítulo geral dos Frades Menores de 1263, reunindo-se em Pisa, reconheceu na biografia de São Boaventura o retrato mais fiel do Fundador e deste modo ela tornou-se a biografia oficial do Santo.
Qual é a imagem de São Francisco que sobressai do coração e da pena do seu filho devoto e sucessor, São Boaventura? O ponto essencial: Francisco é um alter Christus, um homem que procurou Cristo apaixonadamente. No amor que impele à imitação, conformou-se de modo total com Ele. Boaventura indicava este ideal vivo a todos os seguidores de Francisco. Este ideal, válido para cada cristão ontem, hoje e sempre, foi apontado como programa também para a Igreja do Terceiro Milénio pelo meu Predecessor, o Venerável João Paulo II. Tal programa, escreveu na Carta Novo millennio ineunte, está centrado "no próprio Cristo, que deve ser conhecido, amado e imitado, para viver nele a vida trinitária, e transformar com Ele a história até ao seu cumprimento na Jerusalém celeste" (n. 29).
Em 1273, a vida de São Boaventura conheceu outra mudança. O Papa Gregório x quis consagrá-lo Bispo e nomeá-lo Cardeal. Pediu-lhe também que preparasse um importantíssimo evento eclesial: o II Concílio Ecuménico de Lião, que tinha como finalidade o restabelecimento da comunhão entre as Igrejas latina e grega. Ele dedicou-se a esta tarefa com diligência, mas não conseguiu ver a conclusão daquela assembleia ecuménica, porque faleceu durante a sua realização. Um notário pontifício anónimo compôs um elogio de Boaventura, que nos oferece um retrato conclusivo deste grande santo e excelente teólogo: "Homem bom, afável, piedoso e misericordioso, repleto de virtudes, amado por Deus e pelos homens... Com efeito, Deus concedeu-lhe tal graça, que todos aqueles que o viam permaneciam imbuídos de um amor que o coração não podia ocultar" (cf. J. G. Bougerol, Bonaventura, in A. Vauchez (por), Storia dei santi e della santità cristiana. Vol. VI. L'epoca del rinnovamento evangelico, Milão 1991, pág. 91).
Recolhamos a herança deste Santo Doutor da Igreja, que nos recorda o sentido da nossa vida com as seguintes palavras: "Na terra... podemos contemplar a imensidão divina mediante o raciocínio e a admiração; na pátria celeste, ao contrário, mediante a visão, quando nos tornarmos semelhantes a Deus, e através do êxtase... entraremos na alegria de Deus" (La conoscenza di Cristo, q. 6, conclusione, in Opere di San Bonaventura. Opuscoli Teologici/1, Roma 1993, pág. 187).
Catequese de Bento XVI sobre a obra de São Boaventura (10.03.2010)
Queridos irmãos e irmãs,
na semana passada, falei sobre a vida e a personalidade de São Boaventura. Nesta manhã, desejo prosseguir a apresentação enfocando parte de sua obra literária e seu ensino.
Como já disse, São Boaventura, entre os vários méritos, teve o de interpretar autêntica e fielmente a figura de São Francisco de Assis, a quem ele venerou e estudou com grande amor. De modo particular, no tempo de São Boaventura, uma corrente dos Frades Menores, chamada de "espiritual", sustentava que São Francisco havia inaugurado uma fase totalmente nova da história, algo como o "Evangelho eterno", de que fala o Apocalipse, que substituiria o Novo Testamento. Este grupo afirmava que a Igreja já tinha esgotado o seu papel histórico e, dessa forma, deveria ser substituída por uma comunidade carismática de homens livres guiados interiormente pelo Espírito, ou seja, os "franciscanos espirituais".
A base das ideias desse grupo fora escrita nos textos de um abade cisterciense, Joaquim da Fiore, que morreu em 1202. Em suas obras, ele afirmava um ritmo trinitário da história. Ele considerava o Antigo Testamento como a era do Pai, seguida pelo tempo do Filho, o tempo da Igreja. Havia ainda que se esperar pela terceira era, aquela do Espírito Santo. Essa história foi interpretada como uma história de progresso: da severidade do Antigo Testamento para a relativa liberdade do tempo do Filho na Igreja, até a plena liberdade dos Filhos de Deus no período do Espírito Santo, que também seria, finalmente, o período de paz entre os homens, de reconciliação entre os povos e religiões. Joaquim da Fiore havia suscitado a esperança de que o início do novo tempo viria através de um novo monaquismo. É compreensível, portanto, que um grupo de Franciscanos reconhecesse São Francisco de Assis como o iniciador desse novo tempo e que sua Ordem fosse a comunidade desse novo período - a comunidade do tempo do Espírito Santo, que deixava para trás a hierarquia da Igreja para iniciar a nova Igreja do Espírito, não mais vinculada às antigas estruturas.
Houve, portanto, o risco de um gravíssimo mal-entendido da mensagem de São Francisco, de sua humilde fidelidade ao Evangelho e à Igreja, e este mal-entendido comportava uma visão errônea do cristianismo como um todo.
São Boaventura, que tornou-se Ministro Geral da Ordem Franciscana em 1257, encontrou-se frente a uma grave tensão dentro de sua própria Ordem, precisamente por aqueles que apoiaram a mencionada corrente dos "Franciscanos espirituais", que fora fortemente influenciada por Joaquim da Fiore. Exatamente para responder a esse grupo e restaurar a unidade da Ordem, Boaventura estudou cuidadosamente os escritos autênticos de Joaquim da Fiore e os que lhe eram atribuídos e, tendo em conta a necessidade de apresentar corretamente a figura e a mensagem de seu amado São Francisco, desejou apresentar uma justa visão da teologia da história.
São Boaventura afrontou o problema exatamente em seu último trabalho, um conjunto de conferências para os monges do studio parisiense, que permaneceu inacabado e foi reunido através de transcrições dos ouvintes, intitulado Hexaëmeron, ou seja, uma explicação alegórica dos seis dias da criação. Os Padres da Igreja consideravam os sete dias da história da criação como uma profecia da história do mundo, da humanidade. Os sete dias representavam, para eles, sete períodos da história, mais tarde interpretados também como sete milênios. Com Cristo, se entraria no final no último período, isto é, o sexto período da história, a que se seguiria o grande sábado de Deus. São Boaventura assumiu esta interpretação histórica da relação com os dia da criação, mas de uma forma muito livre e inovadora. Para ele, dois fenômenos de seu tempo exigiam uma nova interpretação do curso da história:
1. A figura de São Francisco, o homem totalmente unido a Cristo até a comunhão dos estigmas, quase um alter Christus, e, com São Francisco, a nova comunidade criada por ele, diversa do monaquismo até então conhecido;
2. A posição de Joaquim da Fiore, que anunciava um novo monaquismo e um período totalmente novo da história, indo além da revelação do Novo Testamento, e que exigia uma resposta.
Enquanto Ministro Geral dos Franciscanos, São Boaventura havia sofrido com tal concepção espiritualista, inspirada em Joaquim da Fiore. A Ordem não era governável, e andava logicamente rumo à anarquia. Para ele, duas eram as consequências:
1. A necessidade prática de estruturas e de inclusão na realidade da Igreja hierárquica, da Igreja real, havia a necessidade de um fundamento teológico;
2. Tendo em conta o realismo necessário, não necessitava perder a novidade da figura de São Francisco.
Da resposta de São Boaventura, elaborada de modo muito sutil, posso oferecer aqui apenas um esboço esquemático e incompleto nos seguintes pontos:
1. São Boaventura rejeita a ideia do ritmo trinitário da história. Deus é um só para toda a história e não pode ser dividido em três divindades. A história é una, mesmo que seja um caminho, e - segundo São Boaventura - um caminho de progresso, como veremos;
2. Jesus Cristo é a última palavra de Deus - n'Ele, Deus disse tudo, dizendo e dando a si mesmo. Mais que ele próprio, Deus não pode dizer, nem dar. O Espírito Santo é o Espírito do Pai e do Filho. O Senhor diz do Espírito Santo: "... vos recordará tudo o que eu vos disse" (Jo 14, 26); "colherá do que é meu e vos anunciará" (Jo 16, 15). Portanto, não há um outro Evangelho superior, não há uma outra Igreja a se esperar. Por isso, também a Ordem de São Francisco deve inserir-se nesta Igreja, na sua fé, no seu ordenamento hierárquico;
3. Isso não significa que a Igreja seja imóvel, fixa no passado, e não possa exercer novidade alguma. "Opera Christi non deficiunt, sed proficiunt" ["As obras de Cristo não retrocedem, não são enfraquecidas, mas progridem"], disse o Santo na carta De tribus quaestionibus. Assim, São Boaventura formula explicitamente a ideia de progresso, e essa é uma novidade em comparação aos Padres da Igreja e a grande parte de seus contemporâneos.
Até então, o pensamento central que dominava os Padres era apresentado como cume absoluto da teologia: todas as gerações posteriores somente poderiam ser suas discípulas. Também São Boaventura reconhece os Padres como professores para sempre, mas o fenômeno de São Francisco lhe dá a certeza de que a riqueza das palavras de Cristo é inesgotável, e que também entre as novas gerações podem parecer novas luzes. A unicidade de Cristo também nos garante novidade e renovação em todos os períodos.
Claro, a Ordem Franciscana pertence à Igreja de Jesus Cristo, à Igreja apostólica, e não pode ser construída como um espiritualismo utópico. Mas, ao mesmo tempo, é válida a novidade de tal Ordem no confronto com o monaquismo tradicional, e São Boaventura - como disse na catequese anterior - defendeu tal novidade dos ataques do clero secular de Paris: os Franciscanos não tinham um monastério fixo, podiam estar presentes em todos os lugares para anunciar o Evangelho. Apenas a ruptura com a estabilidade, característica do monaquismo, em favor de uma nova flexibilidade, restitui à Igreja o dinamismo missionário.
Nesse ponto, talvez seja útil dizer que também hoje existem visões segundo as quais toda a história da Igreja no segundo milênio teria sido um declínio permanente; alguns veem o declínio subitamente após o Novo Testamento. Na verdade, "Opera Christi non deficiunt, sed proficiunt" ["As obras de Cristo não retrocedem, não são enfraquecidas, mas progridem"]. O que seria a Igreja sem a nova espiritualidade dos Cistercienses, dos Franciscanos e Dominicanos, da espiritualidade de Santa Teresa de Ávila e de São João da Cruz, e assim por diante? Também hoje vale afirmar: "Opera Christi non deficiunt, sed proficiunt", ide avante. São Boaventura nos ensina, pelo exemplo, o discernimento necessário, por vezes severo, do realismo sóbrio e da abertura a novos carismas doados por Cristo, no Espírito Santo, à sua Igreja. E, enquanto se repete essa ideia de declínio, há também uma outra, esta utopismo espiritualístico que se repete. Nós sabemos como, depois do Concílio Vaticano II, alguns estavam convencidos de que tudo é novo, que há uma outra Igreja, que a Igreja pré-conciliar é finita e teríamos outra, totalmente diferente. Um utopismo anárquico e, graças a Deus, os sábios timoneiros da barca de Pedro - Papa Paulo VI, Papa João Paulo II - defenderam, por um lado, a novidade do Concílio e, ao mesmo tempo, a unicidade e continuidade da Igreja, que é sempre Igreja de pecadores e sempre um lugar de graça;
4. Neste sentido, São Boaventura, como Ministro Geral dos Franciscanos, tomou uma linha de governo na qual ficou clara que a nova Ordem não podia, como comunidade, viver o mesmo "nível escatológica" de São Francisco, em que ele vê antecipadamente o mundo futuro, mas - guiada, ao mesmo tempo, de um são realismo e de coragem espiritual - devia aproximar-se o mais possível da realização máxima do Sermão da Montanha, que, para São Francisco, foi a regra, tendo em conta as limitações do homem, marcado pelo pecado original.
A obra de São Boaventura, o Itinerarium mentis in Deum, é um "manual" de contemplação mística. Ele foi concebido em um cenário de profunda espiritualidade: o monte Alverne, onde São Francisco recebeu os estigmas. Na introdução, o autor explica as circunstâncias que deram origem a este escrito: "Enquanto meditava sobre a possibilidade de a alma ascender a Deus, me foi apresentado, pormenorizadamente, aquele evento maravilhoso que aconteceu com o beato Francisco, isto é, a visão do Serafim alado sob a forma de um Crucifixo. E, meditando sobre isso, imediatamente percebi que tal visão me oferecia a êxtase contemplativa do mesmo Pai Francisco e também o caminho que conduz a ela" (Itinerario della mente in Dio, Prologo, 2, em Opere di San Bonaventura. Opuscoli Teologici /1, Roma 1993, p. 499).
As seis asas do Serafim tornam-se, assim, o símbolo das seis etapas que conduzem progressivamente o homem ao conhecimento de Deus através da observação do mundo e suas criaturas, e através da exploração da própria alma com as suas capacidades, até chegar à união compensadora com a Santíssima Trindade, através de Cristo, à imitação de Francisco de Assis. As últimas palavras do Itinerarium de São Boaventura, que respondem à pergunta sobre como atingir essa comunhão mística com Deus, deveriam ser colocadas nas profundezas do coração: "Se agora deseja saber como isso acontece, [a comunhão mística com Deus] solicita a graça, não a doutrina; o desejo, não o intelecto; os gemidos da oração, e não o estudo da carta; o esposo, não o mestre; Deus, não o homem; a escuridão, não a clareza; não a luz, mas o fogo que tudo inflama e transporta em Deus com a forte unção e ardentíssimo afeto [...] Entremos, pois, na névoa, acalmemos as preocupações, paixões e fantasias; passemos, com Cristo Crucificado, desse mundo ao Pai, a fim de que, após tê-lo visto, digamos com Felipe: isso me basta" (Ibid., VII, 6).
Caros amigos, acolhamos o convite feito por São Boaventura, o Doutor Seráfico, e entremos na escola do Divino Mestre: escutemos a sua Palavra de vida e de verdade, que ressoa nas profundezas da nossa alma. Purifiquemos os nossos pensamentos e as nossas ações, para que Ele possa habitar em nós, e nós possamos compreender a sua voz divina, que nos atrai para a verdadeira felicidade.
Catequese de Bento XVI sobre a obra de São Boaventura (17.03.2010)
Queridos irmãos e irmãs,
nesta manhã, continuando a reflexão de quarta-feira passada, gostaria de aprofundar convosco outros aspectos da doutrina de São Boaventura. Ele é um eminente teólogo, que merece ser colocado ao lado de outro grandíssimo pensador, seu contemporâneo, São Tomás de Aquino. Ambos exploraram os mistérios da Revelação, valorizando os recursos da razão humana, naquele diálogo frutífero entre fé e razão que caracteriza o Medievo cristão, tornando-o uma época de grande vivacidade intelectual, bem como de fé e renovação eclesial, muitas vezes não suficientemente realçada. Eles compartilham outras semelhanças: tanto Boaventura, franciscano, quanto Tomás, dominicano, pertenciam às Ordens Mendicantes que, com seu frescor espiritual, como já recordei nas Catequeses precedentes, renovaram, no século XIII, toda a Igreja e atraíram muitos seguidores. Ambos serviram a Igreja com zelo, com paixão e com amor, a ponto de serem convidados a participar do Concílio Ecumênico de Lyon, em 1274, mesmo ano em que morreram: Tomás, enquanto se dirigia a Lyon; Boaventura, no decurso do mesmo Concílio. Também na Praça de São Pedro as estátuas dos dois santos estão paralelas, colocadas exatamente no início do Colunato que parte da fachada da Basílica Vaticana: uma no Braço esquerdo e outra no Braço direito. Apesar de todos esses aspectos, podemos perceber nos dois grandes santos duas abordagens diferentes de investigação filosófica e teológica, que demonstram a originalidade e a profundidade do pensamento de cada um. Desejo mencionar algumas dessas diferenças.
A primeira diferença diz respeito ao conceito de Teologia. Ambos os doutores se perguntam se a Teologia é uma ciência prática ou teórica, especulativa. São Tomás reflete sobre duas possíveis respostas contraditórias. A primeira diz: a Teologia é reflexão sobre a fé e o propósito da fé é que o homem se torne bom, viva segundo a vontade de Deus. Assim, o objetivo da Teologia deveria ser aquele de guiar no caminho justo, bom; por consequência, no fundo, é uma ciência prática. A outra possibilidade diz: a Teologia visa conhecer a Deus. Nós somos obra de Deus; Deus está acima do nosso fazer. Deus opera em nós o agir justo. Portanto, trata-se, substancialmente, não do nosso fazer, mas do conhecer de Deus, não do nosso operar. A conclusão de São Tomás é: a Teologia implica nos dois aspectos: é teórica, busca conhecer sempre mais a Deus, e é prática: busca orientar a nossa vida para o bem. Mas é um primado da consciência: devemos sobretudo conhecer a Deus e, então, segue o agir segundo Deus (Summa Theologia Ia, q. 1, art. 4). Esse primado da consciência em confronto com a prática é significativo para a orientação fundamental de São Tomás.
A resposta de São Boaventura é muito semelhante, mas com focos diferentes: Boaventura conhece os mesmos argumentos, tanto numa quanto noutra direção, como São Tomás, mas, para responder à pergunta se a Teologia é uma ciência prática ou teórica, São Boaventura faz uma tríplice distinção - alarga essa alternativa entre teórica (primado da consciência) e prática (primado da prática), acrescentando uma terceira atitude, que chama de "sapiencial", afirmando que a sabedoria abrange ambos os aspectos. Ele continua: a sabedoria busca a contemplação (como a mais alta forma de conhecimento) e tem como intenção ut boni fiamus - que nos tornemos bons, sobretudo isso: tornar-se bom. Então ele acrescenta: "A fé está no intelecto, de tal modo que provoca o afeto. Por exemplo: saber que Cristo morreu 'por nós' não permanece na consciência, mas torna-se necessariamente afeto, amor" (Breviloquio, Prologo, qu. 3).
Na mesma linha se move sobre a defesa da Teologia, isto é, da reflexão racional e metódica da fé. São Boaventura elenca alguns argumentos contra o fazer Teologia, bastante difundidos também entre alguns frades franciscanos, presentes ainda em nossos dias: a razão esvaziaria a fé, seria uma atitude violenta no confronto com a Palavra de Deus (cf. Carta de São Francisco de Assis a Santo Antônio de Pádua), ao que ele responde: É verdade que existe uma forma arrogante de fazer Teologia, uma soberba da razão, que se coloca acima da Palavra de Deus. Mas a verdadeira Teologia, o trabalho racional da verdadeira Teologia tem outra origem, não a soberba da razão. Quem ama deseja conhecer sempre mais e melhor o amado; a verdadeira Teologia não empenha a razão e a pesquisa motivada pela soberba, mas é "sed propter amorem eius cui assentit" - "motivada pelo amor por Ele, a quem deu o seu consentimento" (Breviloquio, qu. 2). Para São Boaventura é, portanto, determinante, no final, o primado do amor.
Por consequência, São Tomás e São Boaventura definem de forma diferente o destino último do homem, a sua felicidade plena: para São Tomás, o fim supremo, a que se dirige o nosso desejo é: ver a Deus. Nesse simples ato de ver a Deus encontra-se a solução de todos os problemas: somos felizes, nada mais é necessário.
Para São Boaventura, o destino último do homem é: amar a Deus, encontrar e unir o nosso e o seu amor. Esta é, para ele, a definição mais apropriada da nossa felicidade.
Nesta linha, poderíamos dizer também que a categoria mais alta para São Tomás é a verdade, enquanto, para São Boaventura, é o bem. Seria errado ver nestas duas respostas uma contradição. Para ambas, a verdade é também o bem, e o bem também é a verdade; ver a Deus é amar e amar é ver. Trata-se de focos diferentes de uma visão fundamentalmente comum. Ambos os focos formaram tradições diversas e espiritualidade diversas e, assim, demonstraram a fecundidade da fé, una na diversidade de suas expressões.
Retornemos a São Boaventura. É evidente que o foco específico de sua teologia, a que dei apenas um exemplo, se explica a partir do carisma franciscano: o Pobrezinho de Assis, para além dos debates intelectuais de seu tempo, demonstrou com toda a sua vida o primado do amor; era um ícone vivente e enamorado de Cristo e, assim, tornou presente, em seu tempo, a figura do Senhor - convenceu seus contemporâneos não com as palavras, mas com a vida. Em todas as obras de São Boaventura, também nos seus trabalhos científicos, de escola, se percebe e se encontra essa inspiração franciscana; nota-se que ele pensa a partir do encontro com o Pobrezinho de Assis. Mas, para compreender a elaboração concreta do tema "primado do amor", devemos ter presente ainda uma outra fonte: os escritos do chamado Pseudo-Dionísio, um teólogo siríaco do século VI, que se esconde sob o pseudônimo de Dionísio o Areopagita, acenando, com esse nome, a uma figura dos Atos dos Apóstolos (cf. 17, 34). Esse teólogo havia criado uma teologia litúrgica e uma teologia mística, e havia falado amplamente das diferentes ordens dos anjos. Seus escritos foram traduzidos para o latim no século IX; no tempo de São Boaventura, no século XIII, aparecia uma nova tradição, que provocou o interesse dos santos e de outros teólogos de seu século. Duas coisas atraíram, de modo particular, a atenção de São Boaventura.
1. O Pseudo-Dionísio fala de nove ordens de anjos, cujos nomes encontrou nas Escrituras e havia sistematizado a seu modo, dos anjos simples aos serafins. São Boaventura interpreta essas ordens de anjos como graus de aproximação da criatura a Deus. E, assim, ele pode representar o caminho humano, a subida rumo a comunhão com Deus. Para São Boaventura, não há dúvida: São Francisco de Assis pertencia à ordem seráfica, a ordem suprema, ao coro dos serafins, isto é: era puro fogo de amor. E assim deveriam ser os franciscanos. Mas São Boaventura bem sabia que esse último nível de proximidade a Deus não pode ser inserido em um sistema jurídico, mas é sempre um dom particular de Deus. Por isso, a estrutura da Ordem Franciscana é mais modesta, mais realista, mas deve, porém, ajudar os membros a se aproximar sempre mais de uma existência seráfica de puro amor. Na quarta-feira passada, falei sobre essa síntese entre o realismo sóbrio e o radicalismo evangélico no pensamento e no agir de São Boaventura.
2. São Boaventura, no entanto, encontrou nos escritos de Psudo-Dionísio um outro elemento, para ele ainda mais importante. Enquanto para Santo Agostinho o intellectus, o ver com a razão e o coração, é a última categoria da consciência, o Pseudo-Dionísio faz ainda um outro passo: na subida rumo a Deus, pode-se chegar a um ponto em que a razão não mais enxerga. Mas, na noite do intelecto, o amor ainda vê - vê aquilo que permanece inacessível à razão. O amor se estende para além da razão, vê mais, entra mais profundamente no mistério de Deus. São Boaventura foi fascinado por essa visão, que ia ao encontro da espiritualidade franciscana. Exatamente na noite escura da Cruz aparece toda a grandeza do amor divino; onde a razão não mais enxerga, enxerga o amor. As palavras finais de seu Itinerarium mentis in Deum, em uma leitura superficial, podem parecer expressões exageradas de uma devoção sem conteúdo; lidas, ao contrário, à luz da Teologia da Cruz de São Boaventura, são uma expressão límpida da espiritualidade franciscana: "Se agora deseja saber como isso acontece, [a comunhão mística com Deus] solicita a graça, não a doutrina; o desejo, não o intelecto; os gemidos da oração, e não o estudo da letra; [...] não a luz, mas o fogo que tudo inflama e transporta em Deus" (VII, 6). Tudo isso não é anti-intelectual e nem antirracional: supõe o caminho da razão, mas o transcende no amor de Cristo crucificado. Com essa transformação da mística de Pseudo-Dionísio, São Boaventura se coloca ao início de uma grande corrente mística, que muito elevou e purificou a mente humana: é um ápice da história do espírito humano.
Esta Teologia da Cruz, nascida do encontro entre a Teologia de Pseudo-Dionísio e da espiritualidade franciscana, não deve fazer-nos esquecer que São Boaventura compartilha com São Francisco de Assis também o amor pelo criado, a alegria pela beleza da criação de Deus. Cito, sobre este ponto, uma frase do primeiro capítulo do Itinerarium: "Aquele [...] que não vê os esplendores incontáveis das criaturas é cego; aquele que não acorda pelas tantas vozes é surdo; aquele que por todas estas maravilhas não louva a Deus é mudo; aquele que, diante tantos sinais, não se lança ao primeiro princípio é estúpido" (I, 15). Toda a criação fala em voz alta de Deus, do Deus bom, belo; do seu amor.
Toda a nossa vida é, então, para São Boaventura, um "itinerário", uma peregrinação - uma subida rumo a Deus. Mas, somente com as nossas forças, não podemos subir rumo à altura de Deus. Deus mesmo deve nos ajudar, deve "levar-nos" para o alto. Por isso é necessário a oração. A oração - assim diz o Santo - é a mãe e a origem da elevação - sursum actio, ação que nos leva para o alto, diz Boaventura. Concluo, por isso, com a oração com a qual começa o seu Itinerarium: "Oremos e digamos ao Senhor nosso Deus: 'Conduzi-me, Senhor, no Teu caminho e eu caminharei na Tua verdade. Alegra-se o meu coração no temer do Teu nome" (I, 1).
BENEDICTUS PP. XVI

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