A Igreja e a abolição da escravidão na Europa
Autor: Wanderley Dias da Costa
Fonte: https://www.facebook.com/wander846/
É sabido que a escravidão estava em plena vigência no período medieval, entretanto, é também neste período que os esforços para sua erradicação se iniciam, e importantes organismos sociais começam a “remar contra a corrente” escravagista.
Não há dúvidas de que a evolução da civilização ocidental tem uma de suas marcas na abolição da escravidão na Europa. Considerando a importância que a religião cristã assumiu neste processo, é importante considerar que o ambiente de “nascimento” do cristianismo não era dos mais favoráveis a minorias, muito menos para manifestações particulares, fossem de cunho religioso, social ou cultural. Observa-se a evolução desde o senso comum da sociedade imperial impositiva e autocentrada para uma perspectiva de dignidade do gênero humano, somente através das decisões de concílios e sínodos regionais da Igreja.
Também o Direito Romano e as conjecturas sobre a influência exercida pelas ideias cristãs sobre essa legislatura tiveram muita relevancia; deste modo, o sistema do cristianismo utilizou da modificação das ideias para mudar essa sociedade.
A Igreja não foi só uma grande escola para formação de homens e mulheres doutos, mas também uma associação que regenerou a sociedade, propulsora das bases morais tais como conhecemos hoje, o que lhe custou a missão de enfrentar e, com muita dificuldade, vencer a escravidão. Para Guizot (apud BALMES, 1988), a escravidão na Europa foi abolida pelo Cristianismo. Espanta o fato de a forte influência da Igreja Católica na abolição da escravatura ter tão pouco apelo e conhecimento público, como atesta o mesmo Balmes (1988); essa é uma evidência muito clara para ser contestada. Guizot (apud BALMES, 1998; p.24), reconhecendo o empenho e a eficácia com que trabalhou a Igreja para a melhoria do estado social, afirma:
“Ninguém ignora com quanta obstinação combateu (a Igreja) os grandes vicios daquele tempo, a escravidão por exemplo”.
O número de escravos era muito grande, o que exigiu que a abolição da escravatura fosse empregada de forma planejada, sistemática e progressiva, o que não diminui a importância e o protagonismo da Igreja na questão.
Se nos dias atuais, com a superação da escravidão legal, ainda persistem problemas sociais que implicam em miséria e pobreza para uma parte significativa da população, é possível imaginar qual não era a dificuldade para a aplicação dos conceitos cristãos, e a previsão de suas consequências.
A emancipação universal do homem europeu teve princípio no cristianismo, em tempos onde os escravos não eram sequer reconhecidos juridicamente como pessoas, mas sim como propriedades, bens materiais, como quaisquer outros; os cristãos serão aqueles que começavam a luta por uma sociedade mais justa.
Um decreto abolicionista instantâneo, como se pode imaginar, certamente geraria fortes impactos sociais; deveria ser um processo gradativo, como observa o mesmo Guizot apud Balmes (1988, p.23), para tanto, a Igreja agiu de forma respeitosa e prudente com todas as culturas, levando suas doutrinas gerais, embasadas por um desenvolvimento de suas implicações sociais, introduzindo-as aos poucos, permeando os costumes e as leis, além de influenciar instituições que servissem ao desenvolvimento civilizacional de maneira silenciosa, mas que contribuíssem em direção de beneficiar gerações futuras. Para uma abolição repentina e abrupta seria necessário, ainda, alterar todas as relações de propriedade; isto porque, os escravos eram uma parte fundamental da propriedade: cultivavam as terras, realizavam toda sorte de trabalhos.
Este tópico é de abordagem conveniente, pois elucida a uma das questões que mais podem ser alvo de curiosidade científica e despertar falsas acusações, através das paixões ideológicas, da etnicidade, e de vícios de pesquisa. No período contemporâneo, pouco se fala da abolição da escravidão dos povos no meio cristão do primeiro milênio. O Cristianismo, todavia, atuou para a abolição, o que pode ser constatado através de pesquisa técnica e fontes primárias. Através de suas ideias – até então inovadoras – sobre a dignidade do homem e a conduta moral, fraternidade, caridade, prudência, respeito e misericórdia, a religião cristã plantou as bases do civilismo moderno. Se pudéssemos responsabilizar com alguma justiça um protagonista social pelo fim da escravidão, este protagonismo será a Igreja Católica. Como veremos, as atas conciliares e sinodais estão repletas de decretos que a Igreja redigiu para combater a escravidão, os quais citaremos alguns. Tantos são estes documentos que não apresentar-se-á todos, mas o bastante para demonstrar que, durante todo o primeiro milênio, a Igreja nunca viu a escravidão como algo positivo.
A primeira manifestação em relação a escravidão começa no Século IV, através de um sínodo regional (Concílio Eliberit Anum, a seguir), e podemos verificar vários sínodos e concílios realizados no decorrer do período, envolvendo questões acerca da escravidão e sua atenuação/ extinção. Importa dizer que há, ainda, uma carta do Papa João VIII intitulada Unum est, datada de setembro de 873 e dirigida aos Príncipes da Sardenha (entre as atuais França e Itália) em que si afirma que “[…]como convém a cristãos, que, uma vez comprados, esses escravos sejam postos em liberdade por amor a Cristo…” (DENZINGER-SCHÖNMETZER, 2015; nº 668).
CONCILIUM ELIBERIT ANUM (ANO 305)
Impõe-se penitência à senhora que maltrata sua escrava: define que será admitida aos sacramentos da Igreja Católica somente depois de sete anos de afastamento, caso a vítima morra em decorrência da ação da senhora. Esse concílio permite também a ordenação de escravos.
CONCILIUM EPAONENSE (ANO 517)
“Se alguém matar o escravo próprio, sem o conhecimento do juiz, expiará o derramamento de sangue com dois anos de excomunhão” (cânon 34).
Assim como no Concílio de Hipona – o escravo réu de um delito atroz livra-se de suplícios corporais refugiando-se na Igreja. Dirá literalmente que:
“Se alguém matar o escravo próprio, sem o conhecimento do juiz, expiará o derramamento de sangue com dois anos de excomunhão” (cânon 34; cânon 39).
“O escravo culpável de delito mais grave, se fugir para a igreja, será eximido somente dos castigos corporais. Porém, aprouve que não fosse exigido dos donos nenhum juramento a propósito do cabelo ou de qualquer outra ação” (cânon 39).
CONCILIUM AURELIANENSE QUINTUM (ANO 549)
Acerca dos escravos que, por qualquer culpa se refugiaram no seio da Igreja, estabelecemos que deve ser cumprido o seguinte: que, tal como consta nas antigas constituições, (o escravo) já seguro do perdão, será livre de castigos pela culpa atribuída, com juramentos feitos pelo dono, seja ele quem for. Com efeito, se se provar que o dono, esquecido do dever de fidelidade, transgrediu o que jurou, de tal forma que se prove que, por causa dessa culpa foi torturado com qualquer castigo o escravo que tinha recebido o perdão, esse dono, que se esqueceu da fidelidade jurada, seja suspenso da comunhão total. Mais ainda, se o escravo, já seguro da promessa de perdão, devido ao juramento feito pelo dono, não quiser sair, para não se dar o caso de o dono vir a ficar sem aquele que, por tal teimosia, procura um lugar de refúgio, é permitido ao dono apossar-se daquele que não quer sair, para que de nenhum modo a Igreja venha a sofrer algum incómodo ou calúnia, por causa, por assim dizer, da retenção do escravo. Todavia, que por nenhuma temeridade o dono ouse transgredir a fidelidade que jurou quanto ao perdão concedido. Mesmo que o dono seja pagão, ou pertencente a outra seita, o qual se prove ser estranho ao grémio da Igreja, ao reaver o escravo, procure pessoas cristãs de boa-fé, para que estes, em nome do dono, façam o juramento em favor do escravo, porque aqueles que temem a disciplina eclesiástica devida à transgressão, são bem capazes de guardar o que é sagrado (cânon 22).
CONCILIUM TOLETANUM QUARTUM (ANO 633)
“Os libertos que foram alforriados por alguém, e são recomendados aos patrocínio da Igreja, tal como as regras dos antigos padres estabeleceram, sejam protegidos com a defesa sacerdotal de qualquer incômodo; seja no que se refere ao seu estado de liberdade, seja no que se refere ao dinheiro que sabe que têm” .
CONCILIUM TOLETANUM UNDECIMUM (ANO 675)
Determinará aos sacerdotes a proibição da mutilação de seus escravos, afirmando que:
“[…] a estes, por quem os sacramentos do Senhor devem ser administrados, não é lícito fazerem o julgamento de sangue. Por isso devem ser proibidos de cometerem tais excessos, não suceda que levados por motivações de uma indiscreta presunção de que uma coisa é digna de morte, pretendam julgar com sentencia própria, ou se cometam quaisquer amputações de membros a algumas pessoas, ou determinem que se cometam” (BALMES,1998).
Aos transgressos, decretará que “considere-se preso ao grilhão da condenação eterna, privado do título da ordem que lhe foi concedida e do seu lugar”. Permite aos presbíteros e diáconos constituir escravos à Igreja, todavia, a este não deve ser negada a comunhão no momento de deixar estar esta vida, em virtude da misericórdia do Senhor, que não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva”; que antes de serem admitidos, devem “receber a liberdade do seu estado como alforriados”.
Essa posição parece corroborar com o que dirá o Papa São Gregório em sua Epístola 44, livro 4.0.
CONCILIUM WORMATIENSE (ANO 868)
Impõe-se penitência ao amo que, por autoridade própria, mata seu escravo: “commisserit, quod morte sit dignum, occiderit, excommunicatione vel poenitentia biennii, reatum sanguinis emendabil” (cânon 39).
CARTAS DE SÃO GREGÓRIO
A Igreja gastava seus bens no resgate dos cativos e, mesmo que, com o tempo, tivessem eles condições de reembolsar a quantia despendida, ela não desejava tal devolução e, generosamente, lhes dava quitação.
Os estatutos canônicos permitiam que a autoridade legal investisse na libertação, caso o resgate de prisioneiros passasse para a Igreja. Portanto, como me foi ensinado por você, nós somos, há quase 18 anos, um resquício disso. Certo Fábio, bispo pertencente ao clero, tinha receio dos valores a serem gastos à procura dos escravos, um tipo de medo, como você tem.
Não tomar conhecimento disso, porque está distante, em qualquer tempo, apresenta a suspeita de vós mesmos tirardes a autoridade de um mando destas partes constituintes. Não, eu presumo, o tempo fora de herdeiros de situação difícil, que não pode ser atribuído a qualquer problema (cf. Decreto Graciano, parte 2,4 1.7 ep. 44 e nab. Caus, 12, quest. 2, cap. 4).
CONCÍLIO VERNENSE SEGUUNDO (ANO 844)
Os bens da Igreja serviam de resgate de cativos. Os recursos são fornecidos pelos reis e os cristãos restantes que retornaram para Deus.
“Se quisermos, a contribuição pessoal gratuita para o serviço seria rebaixada. Talvez já tenha sido feito, e um apelo do bispo à agitação civil não conseguiu revogar ou alterar seus caminhos, que, como uma intriga criminosa, decidiram separar-se” (cânon 17).
CONCÍLIO CONFLUENTINO (ANO 922)
Esclarece que é réu de homicídio quem seduz um cristão a se vender como escravo:
“Mais uma vez, a questão é o que deve ser feito para libertar o cristão. A resposta de tudo é que a pessoa que vende é réu de homicídio” (Cap. 7).
CONCÍLIO DE LONDRES (ANO 1102)
Proíbe-se o comércio de homens que se fazia na Inglaterra, “arrastando os seres humanos, ao sol, como animais que são vendidos, sem alguma maneira de serem resgatados adiante…” (Cap. 27).
Vê-se, pelo cânon acima, quanto se adianta a Igreja em tudo o que concerne à verdadeira civilização. Em nosso tempo, considera-se como um notável passo dado pelo mundo moderno que as grandes nações europeias assinem tratados para reprimir o tráfico de negros.
Pois bem, o cânon, em foco, mostra que, em princípios do século XII e, exatamente, na cidade de Londres (onde se firmou recentemente o famoso convênio sobre aquela matéria), se proibia o tráfico de homens, qualificando-o como merece. “Nefarium negotium” (detestável negócio), o chama o concílio: “tráfico infame”, o chama a civilização moderna, encampando, sem dar-se conta disso, os pensamentos e até as palavras daqueles homens a quem denominam como “bárbaros”, daqueles bispos que foram caluniados como se fossem uma turba de conspiradores contra a liberdade e a felicidade do gênero humano.
Aqui temos o motivo da bula Dum Diversas, e abaixo a própria bula, o que não costumam explicar nas salas de aulas, mas nós não vamos deixar você ser enganado pelas narrativas historiográficas com viés ideológico:
“O Islã pôs na escravidão mais de um milhão de europeus. Como muçulmanos não podem ser escravizados, era uma cristã branca que era a escrava sexual do sultão turco”.
Bill Warner, diretor do Centro para o Estudo do Islã Político (CSPI), em entrevista à FrontPage Magazine (05/02/2007), disse:
“Diante dessa situação infernal, o que o líder deste povo deve fazer? Aqui se encaixa perfeitamente o conceito de “guerra justa” e o “direito de legítima defesa”, citados no Catecismo da Igreja Católica. Por isso, o Papa autorizou o rei Afonso V de Portugal a prender os sarracenos, que constantemente atacavam e escravizavam os cristãos na Europa: ‘(…) nós lhe concedemos, por estes presentes documentos, com nossa Autoridade Apostólica, plena e livre permissão de invadir, buscar, capturar e subjugar os sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos de Cristo (…) e reduzir suas pessoas à perpétua escravidão’ (Bula Dum Diversas)”.
O historiador Fernand Braudel (1902-1985) nos traz a seguinte informação acerca do comércio de escravos negros:
“O tráfico negreiro não foi uma invenção diabólica da Europa. Foi o Islã, desde muito cedo em contato com a África Negra através dos países situados entre Níger e Darfur e de seus centros mercantis da África Oriental, o primeiro a praticar em grande escala o tráfico negreiro (…). O comércio de homens foi um fato geral e conhecido de todas as humanidades primitivas. O Islã, civilização escravista por excelência, não inventou, tampouco, nem a escravidão nem o comércio de escravos”.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRAUDEL, Fernand. “Gramática das Civilizações”. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 138.
DENZINGER, Heinrich Joseph Dominicus; SCHÖNMETZER, Adolf. “Enquirídio dos Símbolos e Definições”, Ed. Paulinas: São Paulo, 2015.
BALMES, Jaimes. “A Igreja Católica em face da escravidão”. Centro Brasileiro de Fomento Cultural, São Paulo: 1988.
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