sábado, 16 de dezembro de 2017

CORTAR A CABEÇA DE JOÃO BATISTA

Porque mataram João Baptista?

porque_mataram_joao_baptistaAmorte de João Baptista, durante uma trágica festa de aniversário, é uma das mais conhecidas da história. Mas, o relato feito pelos Evangelhos, será histórico? Podemos aceitá-lo, com todos os pormenores? Não será melhor a de um historiador judaico da época? Vale a pena ler este artigo, para entender.

Duas versões de um crime

Só os evangelhos de Mateus e Marcos a narram. Lucas e João omitem-na. Por sua vez, dos dois evangelhos que a contam, MARCOS traz o relato mais completo e original, pois MATEUS apresenta apenas uma versão abreviada, tomada de Marcos.
Portanto, dos livros bíblicos, Marcos é quem proporciona a informação melhor e mais pormenorizada sobre esse facto. Mas, será histórico o seu relato da morte de João o Baptista? Podemos aceitá-lo assim como está, com todos os seus detalhes?
O problema coloca-se porque existe uma versão diferente, contada por um historiador judeu chamado FLÁVIO JOSEFO, do séc. I. Este escritor compôs, por volta do ano 93 d.C, uma obra intitulada “Antiguidades Judaicas”, na qual apresenta este episódio de um modo diferente.

O juramento imprudente

Vejamos primeiramente, o relato de MARCOS, que diz assim:
«6,16Herodes, ouvindo isto, dizia: “É João, a quem eu degolei, que ressuscitou.” 17Na verdade, tinha sido Herodes quem mandara prender João e pô-lo a ferros na prisão, por causa de Herodíade, mulher de Filipe, seu irmão, que ele desposara. 18Porque João dizia a Herodes: “Não te é lícito ter contigo a mulher do teu irmão.” 19Herodíade tinha-lhe rancor e queria dar-lhe a morte, mas não podia, 20porque Herodes temia João e, sabendo que era homem justo e santo, protegia-o;quando o ouvia, ficava muito perplexo, mas escutava-o com agrado.21Mas chegou o dia oportuno, quando Herodes, pelo seu aniversário, ofereceu um banquete aos grandes da corte, aos oficiais e aos principais da Galileia. 22Tendo entrado e dançado, a filha de Herodíade agradou a Herodes e aos convidados.O rei disse à jovem: “Pede-me o que quiseres e eu to darei.” 23E acrescentou, jurando: «Dar-te-ei tudo o que me pedires, nem que seja metade do meu reino.”24Ela saiu e perguntou à mãe: “Que hei-de pedir?” A mãe respondeu: “A cabeça de João Baptista.”25Voltando a entrar apressadamente, fez o seu pedido ao rei, dizendo: “Quero que me dês i-mediatamente, num prato, a cabeça de JoãoBaptista.” 26O rei ficou desolado; mas, por causa do juramento e dos convidados, não quis recusar.
27Sem demora, mandou um guarda com a ordem de trazer a cabeça de João.
guarda foi e decapitou-o na prisão; 28depois, trouxe a cabeça num prato e entregou-a à jovem, que adeu à mãe.29Tendo conhecimento disto, os discípulos de João foram buscar o seu corpo e depositaram-no num sepulcro» (Mc 6,16-29).

Uma família complicada

Logo no início do relato, encontramos um erroMARCOS afirma que Herodíade, a esposa de Herodes, tinha estado casada antes com um irmão deste, chamado «Filipe» (6,17). É certo que Herodíade tinha estado casada antes com um meio-irmão do seu marido, mas chamava-se Herodes, como o seu actual marido, e não Filipe.
Pode parecer estranho que dois meios-irmãos tenham o mesmo nome. Mas sabemos que a família de Herodes era sumamente complicada. O rei Herodes (seu tronco central) esteve casado com dez esposas, algumas com o mesmo nome; e delas teve numerosos filhos, vários dos quais se chamaram Herodes (daí os historiadores lhe acrescentarem um sobrenome, para os distinguir). Por isso não é estranho que Marcos, que não era um minucioso historiador, se tenha confundido e dito que o primeiro marido de Herodíade se chamava Filipe, quando Filipe era outro irmão de seu marido.
Alguns comentadores da Bíblia, para salvar o erro de Marcos, dizem que o primeiro marido de Herodíade se teria chamado Herodes Filipe (unindo os dois nomes: o correcto, Herodes, e o erróneo Filipe dado por Marcos). Mas, nunca existiu um personagem com o nome de “Herodes Filipe”, a não ser na mente desses comentadores.

Os dois Herodes

Um segundo deslize cometido por Marcos, é chamar a Herodes «rei» (6,14). De facto, houve dois Herodes na vida histórica de Jesus. O primeiro é o famoso “rei Herodes”, que governava o país quando Jesus nasceu. É o cruel monarca que, segundo Mateus, após receber em Jerusalém os Magos vindos do Oriente, mandou matar todos os meninos de Belém e seus arredores, procurando eliminar o Menino Deus.
Mas, durante a vida adulta de Jesus, quem governava o país era um filho desse rei Herodes, também chamado Herodes, e com o sobrenome de Antipas. O qual não era “rei”, mas apenas “tetrarca” (um título inferior ao de rei, derivado de tetras = quatro e arqué = governante; isto é, “o que governa a quarta parte de um território”). Foi este “tetrarca Herodes” que mandou matar João Baptista, e que mais tarde também participou no julgamento de Jesus (Lc 23,8-12).
Mateus e Lucas, a este segundo Herodes chamam correctamente «tetrarca» (Mt 14,1; Lc 3,1). Como vimos, Marcos chama-lhe erradamente «rei», confundindo muitos leitores, que pensavam ser este Herodes da vida adulta de Jesus o mesmo “rei Herodes” da sua infância.

Pela mulher de seu irmão

Um terceiro elemento duvidoso do relato de Marcos é o motivo da prisão de João. Segundo o evangelista, Herodes Antipas prendeu-o porque o Baptista o tinha criticado pelo seu casamento irregular com Herodíade (6,17).
De facto, numa viagem que fez a Roma por volta do ano 27 d.C, Herodes Antipas hospedou-se em casa de seu meio-irmão Herodes, que levava uma vida privada tranquila na capital do Império, como cidadão comum. Estava casado com Herodíade, mulher ambiciosa e de carácter, que não se resignava àquela obscura existência.
Quando Herodíade e o poderoso Antipas se conheceram, ateou-se a vaidade dela e a paixão dele; e ambos concordaram em ela abandonar o seu marido em Roma e partir com o seu cunhado; e que este, mal chegasse à Galileia, despediria a sua mulher.
Este segundo casamento do tetrarca deve ter produzido grande escândalo e indignação na Galileia, por violar abertamente a Lei de Moisés (de Lv 20,21) que proibia o casamento com dois irmãos. Segundo Marcos, João Baptista atreveu-se a denunciar publicamente semelhante imoralidade, e por isso foi parar com os ossos à cadeia.

Por motivos políticos 

Mas, para FLÁVIO JOSEFO, o motivo daquela prisão foi outro. O historiador judeu escreve: «Grandes multidões acorriam para ouvir João (o Baptista), devido à enorme força de atracção que as suas palavras exerciam. Então, Herodes teve medo de que João aproveitasse esta extraordinária influência para incitar os seus seguidores a uma rebelião, pois parecia que toda a gente fazia caso das suas palavras. E entendeu que era melhor eliminá-lo a tempo, antes de ter que lamentar mais tarde as revoltas que este homem perigoso pudesse ocasionar. E desse modo João, por causa desta suspeita, foi preso e conduzido para a fortaleza de Maqueronte, onde foi executado» (in Antiguidades Judaicas, 18,5).
Assim, segundo MARCOS, o motivo da prisão do Baptista foram as suas críticas ao segundo casamento do governante; segundo FLÁVIO JOSEFO, foi o receio de Antipas de que houvesse uma rebelião.
A versão de JOSEFO parece mais exacta. Porque, embora João pudesse ter criticado Herodes pela sua situação matrimonial ilícita, como afirma Marcos, o tetrarca deve ter tido motivos muito mais graves para mandar prender alguém tão popular e estimado pelo povo, dado o risco implicado nesse acto. Além disso, o próprio Marcos diz que Herodes visitava o prisioneiro para o ouvir, e que o escutava com agrado (Mc 6,20). Co-mo podia Herodes escutar com agrado, alguém que o tratava por imoral e perverso? E como condescendia João em falar afavelmente com ele?

Dupla personalidade?

Um quarto elemento duvidoso do relato evangélico é o estranho procedimento de Herodes. De facto, no v.17 lemos que o tetrarca mandou prender o Baptista sem qualquer consideração; e que não só o encarcerou, como também o tinha posto «a ferros na prisão».
Mas, a partir do v.19, o quadro muda. Agora diz que era Herodíade quem perseguia João e o queria matar, ao passo que Herodes o “admirava”, o considerava “justo y santo”, o “respeitava”, e até o “protegia” y defendia dos ataques da sua mulher (o verbo synetêrei significa, literalmente, “defender alguém de ofensas e morte”). O próprio encarceramento, no relato de Marcos, parece mais uma custódia protectora para João do que um suplício.
Como podia Herodes ter um comportamento tão ambíguo? É evidente que Marcos, com o seu relato, não está a fazer uma crónica rigorosamente histórica.

Os convidados para o aniversário

Um quinto pormenor problemático do evangelho é o lugar da morte de João.
MARCOS não indica onde ocorreu; só diz que foi durante a festa de aniversário de Herodes Antipas. Mas, pelo contexto do seu relato, podemos deduzir que foi na Galileia. De facto, o evangelho diz que Antipas ofereceu o banquete da sua festa de anos «aos nobres, aos oficiais e aos principais da Galileia» (6,21). O qual resulta lógico, pois a cidade de Tiberíades, na Galileia, era a capital onde Antipas vivia, onde tinha o seu palácio, e portanto o lugar mais adequado para imaginar o festejo do seu aniversário.
Contudo, FLÁVIO JOSEFO conta que João o Baptista não morreu na província da Galileia, mas na província de Pereia, numa fortaleza chamada Maqueronte. É que Herodes Antipas governava sobre duas províncias: a Galileia, ao norte do país (onde estava a capital, Tiberíades), e Pereia, a sudeste (onde estava a fortaleza de Maqueronte). A sua jurisdição era, pois, bastante incómoda, pois governava duas províncias separadas entre si.

Uma prenda para as classificadas

Ora bem, como João Baptista pregava e baptizava na província de Pereia, é lógico pensar que os soldados de Antipas, quando o prenderam, conduziram-no para a fortaleza de Maqueronte, que ficava na província de Pereia. O qual, uma vez mais, vem dar razão a FLÁVIO JOSEFO.
Mas, não é possível que a festa se tenha celebrado na Galileia (como diz Marcos), e que dali Antipas tenha ordenado que matassem o Baptista em Maqueronte (como diz Josefo)? Segundo o evangelho, tal não é possível, uma vez que a prisão e a festa parecem encontrar-se no mesmo lugar. Pois vemos que a jovem, mal acabou de bailar, pede ao tetrarca que lhe tragam “agora mesmo” a cabeça de João Baptista; e ela espera que o verdugo vá, execute a ordem, e volte. Ora Maqueronte está a 175 quilómetros de Tiberíades! Quantos dias não teria que esperar a filha de Herodíade, até que lhe trouxessem a sua prenda macabra?
Também aqui, pois, Marcos deu uma informação histórica inexacta. Mas, não é que o evangelista se engane. Não; ele não pro-curou a precisão histórica no seu relato, mas a mensagem teológica. E por isso, situa de propósito a morte de João na Galileia, a região onde Jesus vivia e pregava: para mostrar que o martírio do Baptista já ia pressagiando o trágico fim de Jesus da Galileia.

Outra rainha, outros tempos

João, pois, não foi preso por ofensas morais, mas por questões políticas; e não morreu na Galileia, mas em Pereia. Resta ainda uma perguntamorreu durante um banquete?
O historiador FLÁVIO JOSEFO, a quem seguimos até agora, nem o afirma, nem o nega. Só diz que «foi levado para a fortaleza de Maqueronte, e ali foi executado», sem especificar as circunstâncias. Pôde, pois, ter sido durante um banquete celebrado na fortaleza de Maqueronte. Contudo, muitos biblistas opinam que os pormenores da festa, relatada por MARCOS, não são históricos mas inspirados numa obra do Antigo Testamento: o livro de Ester.
De facto, este escrito conta que um rei organiza um opulento banquete para os nobres, os oficiais e a gente importante do seu reino (Est 1,1-3). E que, ao alegrar-se por causa do vinho, o rei faz vir a rainha à sua presença, para que todos a admirem (Est 1, 9-11). E que, durante o banquete, o rei pergunta à rainha: «Qual é o teu pedido, rainha Ester? Pois ele te será concedido. Que é o que desejas? Mesmo que fosse metade do meu reino, seria satisfeito» (Est 7,2). Tudo como na versão de Marcos. Com uma diferença: enquanto Herodíade pede a morte (de João), a rainha Ester pede a vida (dos judeus do país, que estavam em perigo: Est 7,3-4).
É possível, portanto, que João tenha morrido durante um banquete, como relata MARCOS. Mas os pormenores desse banquete parecem ter uma origem popular e lendária, donde teriam sido recolhidos pelo evangelista. Trata-se de um relato surgido dentre as pessoas, que estavam doridas pela morte do seu querido pregador, e que por meio desse relato tentavam mostrar a diferença entre a rainha Ester (exemplo de mulher judia), e a “rainha” Herodíade (exemplo de mulher perversa e fatal).
Notemos, por exemplo, que Antipas dificilmente teria podido pronunciar a frase «dar-te-ei ainda que seja a metade do meu reino», tal como está no Evangelho, porque não tinha “reino”, mas “tetrarquia”.

Ter medo do povo

Dez anos depois de Marcos, MATEUS escreveu o seu evangelho. Para isso, baseou-se no seu antecessor. Mas, ao relatar a morte de João Baptista, preferiu introduzir-lhe certas alterações. Vejamos o seu relato:
«141Por aquele tempo, a fama de Jesus chegou aos ouvidos de Herodes,o tetrarca, 2e ele dis-se aos seus cortesãos: “Esse homem é João Baptista! Ressuscitou dos mortos e, por isso, se manifestam nele tais poderes miraculosos.” 3De facto, Herodes tinha prendido João, algemara-o e metera-o na prisão,por causa de Herodíade, mulher de seu irmão Filipe. 4Porque João dizia-lhe:“Não te é lícito possuí-la.” 5Quisera mesmo dar-lhe a morte, mas teve medo do povo, que o considerava um profeta.
6Ora, quando Herodes festejou o seu aniversário, a filha de Herodíade dançou perante os convidados e agradou a Herodes, 7pelo que ele se comprometeu,sob juramento, a dar-lhe o que ela lhe pedisse. 8Induzida pela mãe, respondeu: “Dá-me, aqui num prato, a cabeça de João Baptista.” 9O rei ficou triste, mas, devido ao juramen-to e aos convidados, ordenou quelha trouxessem 10e mandou decapitar João Baptista na prisão. 11 Trouxeram,num prato, a cabeça de João e deram-na à jovem, que a levou à sua mãe.12Os discípulos de João vieram buscar o corpo e sepultaram-no; depois,foram dar a notícia a Jesus» (Mt 14,1-12).
Quais as alterações de MATEUS, ao texto de Marcos?
» Antes de mais, não lhe pareceu lógico uma pessoa tão imoral como Antipas poder sentir respeito por João, nem ter qualquer tipo de conversa com ele. Por isso, em vez de dizer, como Marcos, que Antipas não o matava porque o admirava, diz que «teve medo do povo, que o considerava um profeta» (v. 5).
» Também elimina a consulta que a bailarina vai fazer à sua mãe. Segundo este evangelista, quando o tetrarca pergunta à jovem o que queria, ela, «induzida pela mãe, respondeu…». Como se mãe e filha já tivessem acordado, previamente, pedir o tétrico presente.
» Enfim, acrescentou no fim do seu relato que os discípulos de João, após terem enterrado o cadáver, «foram dar a notícia a Jesus». Deste modo, quis sublinhar o entendimento e as boas relações existentes entre João e Jesus, e entre os seus discípulos e Jesus.

Saber perder a cabeça

Conta uma lenda que, quando a perversa Herodíade teve nas suas mãos a cabeça de João, não pôde conter a satisfação, e, com um alfinete de ouro, atravessou a língua daquele que se tinha atrevido a denunciar publicamente a sua imoralidade. A lenda mostra até que ponto a tradição posterior continuou assanhada com Herodíade.
Fosse qual fosse o motivo da morte do Baptista, MARCOS incluiu-a no seu evangelho com uma clara intenção: mostrar que João não somente preparou os caminhos de Jesus, mas também preparou o seu desenlace; que a morte de João, aparentemente sem sentido, teve um significado importante: preparar a morte de Jesus. Por isso Marcos a conta antes de Jesus anunciar pela primeira vez a sua futura paixão.
O austero profeta precursor, mais que «uma voz que grita», como ele próprio se definiu (Jo 1,23), tinha sido um trovão que retumbou, com estridência, perante a corrupção do tetrarca que manejava o poder arbitrariamente, sem se importar com o sofrimento das pessoas nem as dores do povo humilde. Por isso perdeu a cabeça: por denunciar as injustiças.
Hoje, quando tantas pessoas “perdem a cabeça” por tontarias, o exemplo do Baptista ensina-nos que é possível perdê-la por coisas mais importantes.
Tradução: Lopes Morgado

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