Filipe estava assustado, em virtude de vários incidentes acontecidos em Betsaida. Junta-se ao povo, procurando algo que pudesse saciar-lhe a fome e a sede materiais e mesmo as necessidades do espírito. É certo que saía dos encontros com Jesus e seus distintos companheiros fortalecidos na fé e no modo pelo qual entendia a vida, nos dois planos que a sua concepção aceitava.
Mas ao se envolver na atmosfera dos homens que negavam as verdades transcendentais do espírito, sentia-se comprometido com determinadas dúvidas, como amarrado a um poste para sacrifício, sem esperança de salvação. O entendimento, nessas horas, fugia-lhe, escapando, igualmente, do seu hábil raciocínio. Era preciso encontrar solução e, para tanto, não existia melhor oportunidade do que as reuniões que se processavam no casarão.
O filho de Betsaida era muito cauteloso nas suas buscas, nunca aceitava idéias sem que, primeiro, examinasse suas propriedades. Tinha verdadeira vigilância contra a influência dos outros para consigo e, quando encontrava uma filosofia, ou mesmo conceitos que o fascinassem, submetia-os à apreciação de outros da sua inteira confiança. A bateia de sua análise não se enganava na escolha do ouro, muito menos da pedra valiosa da verdade, que deveria ser a verdade filosofal dos mestres e dos sábios.
Andando pelos arredores de Betsaida, pensa Filipe, meio incomodado: Será que a mente, principalmente a minha, pode se comparar ao estômago cheio que, depois de certas horas, torna a pedir comida? Quando saio do repasto divino do espirito, nos encontros com Jesus, tenho a segura impressão dê que nunca mais terei fome de entendimento. Depois, com certos acontecimentos, volto quase ao mesmo estado de alma faminta da compreensão dos fatos ocorridos. Vejo que a sabedoria escapa à engrenagem das minhas deduções!
Pensou mais um pouco e surgiu-lhe uma inspiração: Porém, nós temos a quem recorrer, o sábio dos sábios, o Cristo de Deus. Andando mais um pouco, ouviu o balido das ovelhas que brincavam nos campos, algumas delas correndo em sua direção. Uma passa tão rente aos seus braços que o seu ímpeto infantil o convida a agarrá-la. Desliza as grossas mãos no pelo liso e brilhante, falando baixinho com o animal que, sentindo o afeto do apóstolo, corresponde, alisando as pernas de Filipe com a pequena cabeça.
Filipe senta-se em uma pedra próxima e redobra o carinho, entendendo ali, no palco da natureza, que a compreensão podia ser também função de idéias idênticas, pois o animal (raciocinou Filipe com inteligência) estava compreendendo a doação de carinho e retribuindo com o que ele podia dar que, no caso era muito, respondendo, pelo gesto instintivo e a graça de Deus, a algumas das intrincadas dúvidas de Filipe, naquele diálogo simples.
E quem aparece agora, sem que Filipe suspeite, dizendo: A paz seja contigo? Era Natanael, seu grande amigo, que fala em tom de brincadeira: O pastor aproveita todo o tempo disponível para vigiar o seu rebanho e dar de comer a quem tem fome, não é o caso? Filipe retruca, sorrindo: Não, não é o caso. Nas circunstâncias, aqui, o faminto sou eu, o seu servidor mais humilde nos arredores de Betsaida.
E fechando o semblante, diz, emocionado: Natanael! Quando procuramos o Mestre com amor e humildade, mesmo que esse não seja o clima permanente em nossos corações, ele nos atende por intermédio das primeiras possibilidades que surgirem, mesmo que esse meio seja um animal. A natureza, meu irmão, é Deus palpitando no seio da vida!
Natanael, curioso para saber o que se passava com Filipe, aponta para o disco solar que, dando adeus com os últimos raios, anuncia compromissos assumidos. Os dois partem em direção à grande assembléia dos homens que o destino chamara para servir, pela graça de Jesus Cristo. Abraçados e andando em passos cadenciados, notam alguma coisa que os acompanha. Filipe narra a história que se passara entre ele e a ovelha. Aproximando-se da comunidade, escutam os gonzos rangerem, falando, na linguagem dos sons. É hora de entrar!
A alegria dos presentes parecia irradiar-se como melodia que somente a audição espiritual poderia registrar. André, que estava distraído, estremece-se de leve com o forte olhar de Jesus, vendo surgir em sua mente uma vontade irresistível de orar, o que faz, com humildade. Finda a rogativa, Filipe, sem querer, por impulso instintivo, levanta-se e fala, com reverência:
Mestre Jesus! Podes nos explicar a todos, e principalmente a mim, a instabilidade da compreensão? A segurança que esperava e espero, nesta arte de viver com os outros, toma sentidos variados e, se não tomo providências quanto às minhas primeiras atitudes, passo a agredir as pessoas, pelo simples fato de não compreenderem as coisas como eu as entendo!
Há momentos em que não sei o que busco! E aí, luto com a dúvida e, quando estou contigo, como agora, por exemplo, torno-me um gigante, em quase todas as virtudes. Espero a tua benevolência para que eu possa entender a mim mesmo, quando falseio no entendimento dos outros.
Nota-se, em toda a assembléia, que a pergunta de Filipe era a de todos, tal é a insegurança em tudo o que abraçamos. Cristo dispensa um olhar magnânimo a todos, e fala, com amabilidade: “Filipe! Quando pretendes levantar uma casa, primeiro cavas as valas, para que acolham o alicerce. Depois que este já está familiarizado com a argila, é que vêm as paredes, pedindo base para suportar o seu peso. Depois, vem o telhado para em seguida, entrarem os moradores, em segurança, na moradia.
O ser humano precisa construir cada qual a sua própria casa no reino da mente, pois, em primeiro plano, as necessidades exigem a limpeza das valas entulhadas de idéias imprestáveis. Em seguida à colocação das pedras nos alicerces que os ideais superiores nos oferecem, com a liga da boa vontade, mais adiante deveremos levantar as paredes, com cada tijolo representando um conceito que as leis de Deus interligam. Finalmente, aparece o telhado, que é vivência e o tempo chancelando a segurança daquilo que aprendemos”.
Jesus parou um pouco, para que a massa pudesse fermentar e a digestão mental se processasse e continua, com bondade: “Se não fossem os contrastes, Filipe, que encontramos dia a dia, como provar a nós mesmos se aprendemos as lições da vida? Todas as invenções requerem provas incontáveis.
Para nos tomarmos cooperadores de Deus, na vinha infinita da criação, o laboratório do mundo nos testa permanentemente, até chegarmos à condição de sermos servos fiéis do Senhor, respondendo a todos os ataques à verdade, com a própria vida imperturbável no serviço da caridade e do amor dentro e fora de nós, compreendendo e sentindo Deus, pelo bem que não deixamos de praticar, sem interrupção. Nessa disposição, Filipe, não há lugar para as dúvidas que a ignorância faz vicejar”.
Lá fora, pelo silêncio do auditório, escuta-se ao longe o vozerio do tumulto e, no meio da multidão, de vez em quando, distinguem-se berros da ovelha, que parece chamar Filipe para mais carinhos. O filho do lugarejo sorri baixinho, procurando a atenção de Natanael para compartilhar com ele da lição da ovelha.
No pequeno intervalo, todos suspiraram e voltaram sua atenção para a alocução do amigo incomparável, que logo retornou com sua fala cativante:
“Filipe, a Compreensão é, mais ou menos, aquilo que pensas, quando podes dedicar alguns instantes à ovelha que ficou órfã ao nascer, conquanto tal atitude seja fácil, por haver carência de afeto e necessidade de troca de calor em todas as partes, na sensibilidade do amor universal. Onde a Compreensão é mais difícil, Filipe, é diante da maledicência, e quando somos ofendidos e caluniados e, sem revolta, o coração nos obriga a transformar nossos sentimentos em perdão, um perdão que não exige condições.
Nesses momentos, por vezes perdemos o ambiente de segurança, assimilando a violência e a intolerância dos ignorantes e, se fizermos a justiça que a razão nos pede, passamos a pensar do mesmo modo de quem nos injuria. E aí, a semente de Deus, que procurava terra fértil na área do coração, é retirada pelos ventos da invigilância, deixando o agricultor à espera de outras oportunidades, para tornar a semear.
Filipe, meu filho: ocupa mais a tua mente com a Compreensão que deves ter com os outros, sem exigir o mesmo dos outros para contigo, a não ser quando isso vem pelas linhas da espontaneidade. Porque se você passar a compreender a quem desconhece a lei do amor e da caridade, mesmo sem palavras, ele passa a te admirar, e esse é o primeiro passo para o alcance da verdade”.
O assunto despertou a atenção de muitos, pois parecia que o Mestre lera em vários corações os fatos recentemente acontecidos. O tempo passa, passando também os sentimentos de culpa dos que não tiveram Compreensão nos ataques recebidos. Jesus continua com a Palavra fácil e serena:
“O entendimento dos que aqui estão tem de alcançar uma feição mais pura, porque a quem muito foi dado, muito será pedido. Vós todos participais de uma claridade que, em outros olhos, produziria a cegueira. Viemos todos, sem exceção, para servir, sem que a exigência perturbe nossa confiança em Deus e em nós mesmos.
O mal maior, mesmo no seio dos que estão despertando para a luz, é dar querendo receber, é perdoar esperando perdão, é sorrir porque precisa receber um sorriso, é dar pousada a um viandante, pensando que o destino poderá colocá-lo viajando também, é amar pensando, primeiro, no amor que poderá receber em troca. Espero que isso não aconteça entre vós outros, que conheceis ao Pai, conhecendo a mim”.
Filipe sai mastigando o naco de pão espiritual que Jesus lhe dera, concentrado em sorver toda a essência, sem perda de um só til. As portas se abrem, dispersando toda a unidade discipular, que pensava em como seria a noite seguinte.
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