sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Prece

Não se sabe bem o que é a prece, senão depois de havermos abandonado a Terra.

É como quem só aprecia a luz depois de demorado encerro1 em lugar escuro; só estima a saúde após longa e dolorosa enfermidade. Na Terra consola-nos a oração. É um alívio às nossas penas, um desafogo às nossas mágoas, uma esperança na nossa dor.

É, porém, um benefício todo subjetivo. Sentimos o bem que nos vem da prece, segundo a intensidade da nossa fé, em nossa conformidade com o sofrimento; na tranqüilidade da nossa consciência, pelo alívio do encargo que nos levou à súplica; na serenidade da nossa alma, na doce e misteriosa comunhão que se estabelece entre quem ora e a divindade a quem se ora.

Só depois de se haver saído da Terra se conhece, na sua plenitude, o efeito da prece, e o grau surpreendente que ela representa na perfectibilidade espiritual da humanidade.

A prece, como a dor, é dos principais fatores na evolução da alma. A dor corrige, desbasta, amolda, modifica, seleciona, esmaga, humilha, enaltece, martiriza, santifica; a prece depura, sutiliza, espiritualiza, liberta, eleva.

A dor serve para torturar, no aperfeiçoamento, o espírito incrustado na carne, como quem educa um leão encerrado em férrea e sólida jaula; a prece é a emanação vaga, poderosa e simpática, que vai pondo esse espírito em contato com Deus, como a educação vai pondo a fera em amizade com o domador.

Pela prece se conhece o estado de pureza da alma. Ela, quando sincera e humilde, estabelece, em volta de quem a faz, tão luminosa e santa irradiação, que dificilmente espírito algum inferior se atreve a aproximar-se.

É coisa de maravilha ver como às vezes, de uma sórdida criatura terrena, se despede, em suavíssimas efluviações, a luz esplendorosa da prece, que vai subindo em ondulações vibrantíssimas, até se perder no espaço infinito onde reside Deus!

Faz lembrar o carvão negro do arco voltaico, que tocado pela corrente elétrica, despede o clarão branco e intensíssimo, que vai perder-se na distância infinita, em etéreas vibrações.

Todos os sentimentos humanos se refletem, pelo pensamento, em cintilações de variadíssimos cambiantes e intensidades, consoante o grau de pureza deles e a força impulsionadora da vontade ou a ação reflexiva da concentração espiritual.

Assim nós outros, desencarnados, conhecemos, instantaneamente, pela intensidade e pela cor irradiativa do pensamento, a qualidade de sentimentos que tumultuam no cérebro de cada individualidade terrena, para escolhermos, pelos laços de afinidade e simpatia, a companhia e amizade que nos convêm. Conhecemo-las, como os físicos conhecem os gases pela chama, e os químicos os elementos pelas reações.

Pois nenhuma irradiação é tão pura, tão suave, tão alva, tão intensa, tão longa, tão bela, como a da prece. É esta a mais lídima manifestação espiritual, o escol de todos os sentimentos depurados.

Ao passo que os sentimentos grosseiros, materiais e impuros, como o orgulho, a ambição, a vaidade, o ódio, a concupiscência, a ira, a soberba, a maledicência, se contorcem em volta do cérebro em que germinam, crescem e irradiam, como medonhas serpentes presas a uma fogueira, a prece sobe, alteia, como uma pomba branca que se eleve, em linha reta, ao Zênite, deixando um luminoso rasto que a ligue ao ninho de onde saiu.

Quem há, que em momento angustioso, se não recorde que a causa da sua angústia, para que não encontra lenitivo em si nem em tudo que o rodeia, pode achar remédio na prece? Quem se não refugia nela, como em cidadela inexpugnável, como em abrigo seguro, como em mansão tranqüila, como em lugar hospitaleiro, como em estância serena e consoladora?

E entretanto há quem não o faça, como há pessoas que, tomadas de medo, estacam, atônitas e paralisadas, no sítio mais perigoso ou medonho, quando, com um ligeiro esforço, um golpe de audácia, uma reflexão serena, um pouco de sangue frio, se punham livres do que as apavorava.

Dizem os descrentes que a prece é uma velharia, uma banalidade, uma manifestação de inópia, uma herança retrógrada, uma fraqueza atávica, uma degenerescência intelectual, uma claudicação da vontade, uma submissão inconsciente, uma prova de pusilanimidade, tudo coisas impróprias de espíritos cultos, educados para a luta, senhores da verdade, armados pela consciência do seu valor, pioneiros da ciência e dispensadores de Deus.

Será assim?

É, segundo eles; não, segundo eu.

Não quero chamar em meu auxílio a verdade aprendida na lição que a morte nos dá. Basta que me socorra da que ainda no mundo se extrai da lógica. Olhe-se ao tempo ido, até ao limite onde a memória humana encontra luz, e ver-se-á em todas as fases dele, desde que o cérebro do homem começou a engendrar pensamentos e que o coração começou a depurar afetos, que os mais puros exemplares, os mais belos filhos de que a Humanidade se orgulha, buscaram a sua inspiração, a base do seu gênio, na adoração à entidade superior que não viam, mas que sentiam em tudo: - na inteligência própria, no instinto da animalidade, na perfeição da flora, no esplendor da natureza, na harmonia geral, e, acima de tudo, em um quid(que) vago, indefinido e indefinível, que lhes subjugava a razão, a vontade e a consciência, e os impelia ao reconhecimento desse princípio supremo.

E como se manifestava esse reconhecimento?

Pela prece.

A prece é como a luz: - tem todos os cambiantes, desde o da simples súplica instintiva, inconsciente, mental, muda, de olhar para o céu em busca de socorro, até a súplica veemente, desesperada, aflita, doida, no extremo da agonia, na orla da perdição, no âmago do sofrimento, no paroxismo da dor, à beira da morte. Quem há suficientemente forte, suficientemente ateu, suficientemente material, suficientemente desgraçado, que não tenha conhecido o suavíssimo lenitivo da prece?

Ela alivia, encoraja, anima, consola, aperfeiçoa e engrandece.

Ela põe em ligação o homem com Deus. Quando mesmo Ele não existisse, é incontestável que o homem, desde todo o sempre, considerou aquela criação ideal como princípio superior de tudo, a perfeição absoluta, a fonte de todo o bem, a sede do poder supremo, origem de toda a força, caudal de toda a bondade, enfim, o que de mais belo, de mais puro, de mais grandioso a fantasia pôde inventar e a razão pôde aperceber. Pois a única coisa que honra a humanidade insignificante, fraca, defeituosa e má, a ponto de a pôr em correspondência com a sublimidade máxima, que em simples presunção cremos poder apavorar, deslumbrar, atender, castigar, perdoar, elevar, precipitar, criar, destruir, salvar ou perder o homem; criar, reger, transformar, impulsionar, despenhar, aniquilar a flor, o inseto, a fera, o mar, o mundo, o sol, os planetas, as constelações, o universo, o infinito, é a prece. Único conduto, única via, único meio. Não se descobriu outro, não há outro, não se presume outro.

Como é, pois, que a prece é uma velharia deprimente, uma manifestação de fraqueza e de inópia, se é a coisa mais elevada e mais grande do pensamento humano?

O homem julga-se sempre honrado se outro homem, que ele admira, lhe permite a fala, lhe corresponde ao afeto, lhe tributa conceito, lhe estende a mão.

Não acha nisso baixeza nem servilismo. Entretanto aquele homem que ele admira e que pode supor o escol de virtudes, pode ser simplesmente um ninho de víboras.

O que representará então a prece, que lhe permite comunicar com quem ele supôs, desde sempre, ser a Causa, a Lei, a Verdade, de tudo que existiu, existe e existirá?

Se nas simples relações com um seu semelhante, se honra, engrandece e satisfaz, como o podem deprimir essas relações com quem ele supõe o feixe do Universo e o seu próprio Criador?

Ó vaidade das vaidades, cegueira das cegueiras!

Quem há que, em verdade, possa dizer que no seu íntimo, no altar da sua alma, a sua consciência e o seu espírito não ajoelham e não oram a Deus?

Prece, prece! Refúgio dos pecadores, dos aflitos, dos fracos, dos tristes, dos desgraçados, dos maus, dos justos, dos miseráveis, dos crentes, dos simples, dos desiludidos, dos santos!

Prece! cordão tecido de luz e de amor, que Deus estende aos náufragos do mundo, para a sua salvação! Escada de Jacob para que os homens subam até Ele!

Salve Deus.

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